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sexta-feira, 20 de abril de 2012

Teologia Narrativa Paulo Brabo 02 de dezembro de 2007
 Texto base da ocasião do 2º Café Teológico.
 Por Paulo Brabo.
  No princípio a terra era sem forma e vazia. No princípio era o Verbo. Ou, como se diz com outro vocabulário: era uma vez. Quando ouviram pela primeira vez a palavra da Lei nos Dez Mandamentos, conta uma velha história rabínica, os israelitas desfaleceram. Suas almas os deixaram. A palavra então retornou a Deus e bradou: – Ah, Soberano do Universo, tu vives eternamente e tua Lei vive eternamente. Mas enviaste-me a mortos. Estão todos mortos! Por essa razão Deus teve misercórdia e tornou sua palavra mais palatável. Essa história traz duas lições. Primeiro que a palavra de Deus é poderosa. É sua própria identidade, e “quem pode resistir à sua presença?” Em segundo lugar, para tornar sua palavra-presença mais palatável, Deus encontrou uma solução: recontou-a sob a forma de histórias. Quando o grande rabino Israel Shem Tov via a desgraça ameaçando os judeus era seu costume ir a um certo lugar da floresta para meditar. Ali ele acendia uma fogueira, proferia uma oração especial e o milagre era realizado e o infortúnio evitado. Mais tarde quando seu discípulo, o celebrado Magid de Mezritch, teve oportunidade, pela mesma razão, de interceder ao céu, ele foi ao mesmo lugar na floresta e disse: “Senhor do universo, ouve: não sei acender uma fogueira, mas sou ainda capaz de proferir a oração”, e novamente o milagre foi realizado. Ainda mais tarde o rabino Moshe-leib de Sasov, a fim de salvar seu povo mais uma vez, foi à floresta e disse: “Não sei acender uma fogueira e não conheço a oração, mas conheço o lugar da floresta e isso deve bastar”. Bastou e o milagre foi realizado. Então recaiu sobre o rabino Israel de Rhyzin afastar o infortúnio. Sentado em sua poltrona, cabeça entre as mãos, ele disse a Deus: “Não sei acender uma fogueira, não conheço a oração e não sei achar o lugar na floresta; tudo que posso fazer é contar a história, e deve bastar”. Bastou. De onde vem a obsessão dos judeus e dos rabinos, e portanto de Jesus, com a narrativa? Porque os escritores bíblicos preocupam-se menos com lugares, conceitos e idéias do que com relatos, parábolas e genealogias? Pressuposto essencial do Primeiro e do Novo Testamento: > Deus revela-se no fluido invisível do tempo, e não no tecido visível do espaço. Na seta indomável do tempo, não no círculo conquistável do espaço. Costumamos pensar em ídolos como estátuas e imagens, coisas visíveis. Porém na época da revelação da Lei os ídolos dos outros povos eram menos deuses visíveis do que deuses essencialmente entranhados no espaço. Deuses territoriais como Baal, deuses definidos por onde estavam, por onde residiam, pelo território que dominavam, pelo local onde podiam ser encontrados, por onde deviam ser conjurados. Deuses do domínio do espaço. Enquanto as divindades dos outros povos estavam associadas a lugares e coisas, o Deus de Israel era o Deus dos acontecimentos. Não estava confinado a um território ou a coisa alguma: nenhum templo, nenhum artefato, nenhuma imagem. Mesmo o projeto do tabernáculo (que era itinerante, e portanto não territorial) parece ter sido reação compassiva de Deus ao episódio do bezerro de ouro. Deus é invisível não por ser irreal, mas por dizer respeito à realidade do tempo. Porém em toda a criação a primeira coisa a ser santificada não foi uma palavra, uma coisa, uma idéia, uma montanha, um tabernáculo: foi o sábado, um momento no tempo. Deus escolheu o sábado, um momento no tempo, para o santificar. A primeira providência de Deus é que reavaliemos nossas categorias de santidade: não um lugar, não uma coisa, mas um momento, ou seja, um trecho de narrativa. A santidade do tempo veio primeiro, depois a santidade do homem, e por fim a santidade do espaço. Na civilização ocidental, tudo que não diz respeito à influência judaica - e de tudo que há de judaico na cultura cristã - diz respeito à obsessão do homem em conquistar o espaço. Somos expansionistas: queremos preencher o espaço. Nossa civilização, exatamente como egípcios, babilônios e filisteus, vive debaixo da idolatria da imagem, e portanto do espaço: associamos valor e beleza e espiritualidade a coisas visíveis e palpáveis no espaço. Ferramentas, computadores, ícones, periféricos, aplicativos, templos, ilustrações, programas de rádio, estudios de gravação, casas na praia, viagens à Grécia, à Disney ou à Palestina. Queremos preencher o espaço, dominá-lo, percorrê-lo - queremos ser definidos por isso. A Tela de plasma, a Ferrari, o Land Rover, os quadros na parede, os vinhos certos na geladeira, estão preenchendo o espaço - demonstrando que fomos capazes de conquistá-lo. Somos muito menos acostumados a - e preparados para - dominar o tempo. Sabemos oferecer o melhor do espaço a nossos filhos, mas travamos porque não sabemos como oferecer a eles o melhor do tempo. Não sabemos o que fazer com o tempo: não sabemos olhar o tempo de frente. Por mais articulados, resolvidos e ricos que sejamos, aterrorizam-nos: sala de espera. Fila de banco. Aposentadoria. Férias. Momentos em que temos de lidar com o tempo. O tempo não pode ser dominado, é "invisível" e nos apavora. É por isso que temos horror, tanto na qualidade de cristãos como na de cidadãos do século XXI, à manifestação mais essencial da devoção judaica, o shabat/sábado - o dia em que tudo que se deve fazer é encarar o tempo. O que nos assusta não é o ócio, o tempo "perdido e improdutivo," mas nossa incapacidade de lidar com o tempo, de encará-lo de frente, nossa cegueira em enxergar Deus nele. É por isso que o shabat dos cristãos, o domingo, foi por nós inteiramente preenchido por atividades, de modo que ele não corresponde de forma alguma ao shabat, que é cessação e abstenção e continência. No domingo temos coisas para fazer e lugar para ir. O shabat como dia de cessação nos apavora porque nele não temos obrigação nenhuma a desempenhar e destino nenhum para alcançar. É um dia em que a passagem e a contemplação do tempo são fins em si mesmos, e isso nos é inconcebível. Nós, precisamente como egípcios e gregos, somos obcecados por encontrar Deus no espaço. Os judeus - como Jesus e os primeiros cristãos - permanecem obcecados por encontrar Deus no fluxo do tempo. O shabat permitiu que o judaísmo se definisse desde o primeiro momento como religião linear, e não rito circular. Uma religião pode escolher definir-se, basicamente, pelo seu respeito aos ciclos ou pela sua obsessão com a história. As religiões que optam pelos ciclos (vamos chamá-las, apenas por conveniência, de circulares) celebram incessantemente o [eterno] retorno dos ciclos naturais: as estações do ano, as épocas de plantio e colheita, o ciclo reprodutivo de homens e animais – e portanto o sexo. Seus rituais são construídos para cultivar aqui e agora, no presente, a beleza e o mistério do que sempre aconteceu e voltará invariavelmente a acontecer. Uma religião circular opinará que são inteiramente irreais os limites entre uma época e outra, entre uma geração e outra, entre uma manifestação da natureza e outra: e que, portanto, são ilusórias as distinções que fazemos usualmente entre homens e animais até mesmo entre uma pessoa e outra. Tudo é tudo, todos serão todos e todos já foram todos e misteriosamente o são. Não sobra, oficialmente, espaço para noções como a individualidade ou a singularidade da espécie humana. As religiões que optam pela história (vamos chamá-las de lineares) enxergam a existência não como um círculo, mas como uma flecha com uma direção e um propósito, uma ousada aventura norteada por uma inteligência oculta e empreendedora cujo plano vai se executando e revelando progressivamente. Como não contam com os ciclos para manter a sua sanidade, as religiões lineares dependem incessantemente de revelações e de registros de revelações: definem-se pelos seus profetas, especialmente pela expectativa dos profetas e pelas histórias de profetas. Tendem por isso a ignorar o presente a a concentrar-se no futuro – e, com pelo menos a mesma paixão, no passado. Ao mesmo tempo, enfatizam a responsabilidade individual e a absoluta singularidade de tudo: do momento histórico, da criação, da espécie, da nação, do indivíduo, de Deus. Os circulares andam em círculos, os lineares andam para frente e para trás. Os lineares almejam ousadamente estar onde nenhum homem jamais esteve; os circulares têm por certo que estão onde todos já estiveram e sempre estarão. ”A religião dos patriarcas estava infundida de um senso histórico que é caracteristicamente semita ou hebraico. Ao contrário dos povos estabelecidos em Canaã, que estavam mais preocupados em ajustar os ciclos da natureza e preservar o equilíbrio social, os hebreus errantes tendiam a expressar a sua fé na linguagem dinâmica da história. Eram peregrinos e aventureiros que, em reposta a um chamado divino, haviam deixado a sua terra de origem e partido para o desconhecido e para o incerto – rumo a uma terra que Deus lhes mostraria no devido tempo. Viviam por um empreendimento de fé, confiando que o seu futuro estava nas mãos do seu Deus”. Embora fosse celebrado periodicamente, o shabat não correspondia a nenhum ciclo natural - da agricultura, da lua, das estrelas, do sol, do corpo humano. Sua recorrência era uma maneira de contar a passagem do tempo (religião linear) e não de celebrar um ciclo (ritos circulares). No shabat não há templo para se ir, não há peregrinação para se fazer, não há ritual palpável para se cumprir. Trata-se de uma celebração cuja essência consiste em encontrar suficiência não em fazer (ou em deslocar-se, que é a mesma coisa) mas em existir. Ou seja, o desafio para o celebrante do shabat é o de dominar o tempo, e encontrar dessa forma Deus em seu próprio ambiente. O domínio de Deus não é o espaço, é o tempo - e portanto seu modo de expressão não é o ídolo ("não farás para ti imagem...") nem a teologia conceitual, mas a narrativa. * * * Hoje em dia tendemos a pensar a respeito de Deus em categorias teológicas, e não narrativas. Sabemos descrever o mecanismo do pecado original e a economia da redenção; sabemos enumerar as quatro leis espirituais e desfiar a lista dos atributos de Deus. Defendemos e explicamos a nossa fé em termos de trindade, sacrifício substitutivo, imanência, soberania, graça irresistível. Acreditamos que a essência de Deus é transmitida de forma adequada e suficiente através de dogmas, proposições e conceitos. Discutimos se a Bíblia é ou contém a palavra de Deus. Se é cristã uma visão de mundo que contorne os conceitos da depravação total ou da perseverança dos santos. Se é possível conciliar predestinação com responsabilidade pessoal, livre-arbítrio com soberania de Deus. De que forma o fluxo imponderável da narrativa consolidou-se na forma de proposições, sistemas e credos? Por que a parábola acabou substituída pela filosofia, a narrativa pela teologia sistemática? O pontapé inicial dessa transformação foi a influência da filosofia grega na produção literária e visão ideológica dos primeiros cristãos. A cosmovisão judaica foi influenciada e por fim substituída pela noção grega de um deus impassível e fora do tempo - sendo que um Deus fora do tempo é inconcebível dentro da visão de mundo da Bíblia Hebraica. O judaísmo encontrava Deus no fluxo dos acontecimentos, e portanto no idioma do tempo e da narrativa; os gregos (e, em conseqüência, os cristãos) buscavam cristalizar Deus no campo das idéias, e portanto dentro dos limites do espaço. O judaísmo recusava-se - e ainda recusa-se - a permitir que Deus fosse reduzido ao nível das conclusões, dos conceitos e das idéias. A "teologia" judaica, epitomizada pelo Talmude, é dialética e não dogmática. O problema de tentar-se definir Deus através de idéias é que uma idéia, uma vez formulada, torna-se imediatamente um monumento, um marco fixo a que se pode voltar e diante do qual podemos nos dobrar. Um conceito estanque a respeito de Deus é, essencialmente, um ídolo - e emblema da nossa obsessão em tentar formulá-lo no espaço ao invés de vislumbrá-lo no tempo. Blaise Pascal observou certa vez que o Deus da Bíblia é o “Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó”, não o Deus dos filósofos e dos sábios. “Isso é verdade no sentido de que a fé bíblica é, para perplexidade e escândalo de muitos filósofos, de caráter fundamentalmente histórico. Suas doutrinas são realidades e eventos históricos, não valores abstratos ou idéias existindo num reino atemporal”. No entanto, pela influência dos gregos, a religião linear do judaísmo acabou virando rito circular na maior parte das manifestações posteriores do cristianismo. O segundo golpe contra a visão narrativa de Deus veio com a glorificação da razão que configurou o Renascimento e o Iluminismo - e que discutiremos a seguir. * * * Recentemente, muitos teólogos tem começado a questionar a supremacia da teologia sistemática. O primeiro problema da teologia sistemática, concluíram eles, é que essa intelectualização está baseada nas suposições de filosofias passadas e contemporâneas – que são por definição limitadas e condicionadas. A teologia sistemática codificada está irremediavelmente embutida num sistema específico e isso afeta suas conclusões e expressões. Em segundo lugar, todas as teologias sistemáticas, até hoje, são fechadas a outros com diferentes pressuposições e fundamentos, e são apenas uma peça do todo. Em contraste, a narrativa consegue tocar de imediato qualquer pessoa, independentemente do sistema filosófico ou ideológico dentro dos quais tenha sido condicionada. Muitos teólogos passaram por essa razão a questionar o que chamam de nossa “velha dependência química a um modo de pensar analítico, racionalista e prosaico”. Amos Wilder, por exemplo, critica “o imbecilizante axioma de que a verdade genuína (ou a verdadeira sabedoria) deve limitar-se ao que pode ser enunciado sob a forma de prosa conceitual, em linguagem denotativa, despida de qualquer sugestão conotativa; ou seja, num enunciado ou descrição de caráter científico”. Thomas Driver: "Alguns teólogos tem começado a demonstrar interesse na importância da narrativa, sentindo que o nosso discurso lógico, científico e teológico é secundário. Compartilho dessa visão. Tenho há muito refletido que a teologia é para a narrativa religiosa o que a crítica literária é para a literatura: mero comentário executado sobre uma forma superior de expressão. Sou um dos que crêem que a teologia afastou-se demais, no curso do tempo, de suas raízes narrativas. Encontro-me não apenas concordando que toda teologia tem origem em narrativas, mas também ponderando que todo conhecimento provém de um modo dramático de compreensão. Longe de meramente ilustrar verdades que já conhecemos de algum outro modo, a imaginação dramática é o modo pelo qual damos os passos essenciais rumo ao conhecimento de qualquer natureza". * * * Não é a partir do nada que estamos chegando a essa nova visão. Como o sujeito da parábola, estamos descobrindo um tesouro enterrado que nos precedeu. Esse modo narrativo de enxergar a revelação de Deus só parece novo e revolucionário enquanto desconhecemos as suas raízes judaicas a portanto bíblicas. Depois de séculos de teologia sistemática, para que começássemos a redescobrir a importância da narrativa, foi necessário que fossemos tocados pelos ventos da pós-modernidade. Quem fala em pós-modernidade está dividindo a história da civilização, muito grosseiramente, em três grandes períodos: a era pré-moderna, a era moderna e a era dos nossos dias – esta que, na falta de um nome melhor, convencionou-se chamar de “pós”. A primeira era, a pré-modernidade, começou com o primeiro homem e estendeu-se a até algum momento do século XVIII. Durante todo esse período o ser humano manteve-se, basicamente, um bicho místico. A vida estava além do controle do homem e só podia ser explicada em termos sobrenaturais. Em geral não ocorreria a ninguém duvidar da realidade do mundo dos espíritos ou de coisa que o valha (digamos, o imaterial mundo das idéias de Platão), e todas as soluções aos problemas do ser humano dependiam da boa vontade de Deus ou deuses. Perto de 1700 a modernidade fincou pé. A Renascença deu a primeira, o Iluminismo a segunda e definitiva estocada que tiraram Deus do centro das atenções e colocaram ali o homem e os esforços humanos – particularmente a razão. A principal característica da era moderna é a sua suprema confiança na mente humana. Gente como Descartes gravou a ferro e fogo na mentalidade ocidental a noção de que a razão é o único caminho para o conhecimento, e toda a era moderna partiu do pressuposto de que a razão e a ciência (aplicadas em todas as áreas: saúde, política, urbanismo, ética) trariam as soluções necessárias para os problemas da humanidade. O slogan da nossa bandeira brasileira, “Ordem e Progresso”, é tipicamente moderno em seu otimismo na iniciativa humana fundamentada no triunfo da sensatez e da razão. Foi ao redor de 1960 que a maré começou a mudar. Coisas como a crise de energia, a teoria da relatividade, a guerra do Vietnã, a bomba de Hiroshima e os abusos do consumismo contribuíram para que as pessoas passassem gradualmente a concluir que a razão humana talvez não trouxesse, como prometera, respostas para os anseios mais profundos do mundo e do homem. Trezentos anos da supremacia da razão não haviam trazido nenhuma solução unânime para os problemas da guerra, da fome, da injustiça, do vazio existencial. A razão, concluíram esses, fracassara, e diferentes grupos independentes começaram a tatear em todas as direções em busca de alternativas. A revolução sexual, mística e química trazidas à luz pelos hippies dos anos 60 foram os primeiros movimentos que pressupunham essa desconfiança pós-moderna para com as soluções otimistas e pré-fabricadas da era anterior. A pós-modernidade que se levantou das cinzas da modernidade é tremendamente difícil de definir – entre outras coisas, porque definição é conceito tipicamente moderno e pertence a uma era anterior. Pode-se dizer com segurança que o homem pós-moderno é ao mesmo tempo cético, espiritual e tolerante. Ele duvida da eficácia da razão, do pensamento linear, da lógica convencional, da explicação racional. Ele está portanto aberto a todas as formas de misticismo e religiosidade, mas não apostará na validade definitiva de nenhuma, porque crê que todas contém a sua parcela de “verdade” e nenhuma pode ter a pretensão de se posicionar como verdade definitiva – possibilidade que arruinaria a validade e a beleza das outras alternativas. Por que que a igreja cristã não estava pronta e presente para acolher esses “filhos desiludidos” da razão e da modernidade logo que eles começaram a pipocar na década de 1960? Por que os hippies não se voltaram para a fé cristã quando precisaram satisfazer o seu anseio por uma espiritualidade real? A resposta curta é que a igreja cristã havia, ela mesma, se dobrado no altar do modernismo. O discurso da supremacia da razão havia sido tão longo e eloqüente que até mesmo os cristãos tinham caído no logro da sua pregação. A igreja cristã havia de alguma forma adotado a noção paradoxal de que tudo a respeito da fé pode ser explicado e exposto racionalmente, inclusive as imponderabilidades da criação e da salvação. A própria Bíblia havia caído vítima dessa ênfase excessiva na razão humana. Complicadas fórmulas eram e são utilizadas para provar que a escritura cristã faz sentido racional e é espelho fiel da realidade científica. Em 1793, Kant publicava A religião apenas dentro dos limites da razão, e quase duzentos anos depois Josh McDowell articulava ainda uma defesa racional da divindade de Cristo, demonstrando por A + B que a fé cristã é a escolha mais sensata na prateleira. O problema é que, adotando essas interpretações racionais, a igreja confessava que a ciência e o racionalismo são os critérios pelos quais a realidade deve ser julgada. Quando começaram a buscar onde saciar a sua terrível sede pelo espiritual e pelo místico, as pessoas foram forçadas a concluir que a fé cristã era simplesmente racional demais para interessá-las – e a igreja perdeu assim o bonde da pós-modernidade. Chamar a Bíblia de pós-moderna seria anacronismo, mas creio que pode-se com segurança afirmar-se que os escritores bíblicos não tinham uma mentalidade moderna; não criam na supremacia da razão nem na superioridade da exposição linear e dos sistemas racionais. Jesus, por exemplo. Para escândalo e perplexidade dos teólogos, Jesus não chegou nem perto de expor a sua teologia de forma sistemática. Tudo que ele deixou a fim de transmitir a sua mensagem foi o seu exemplo, um punhado de histórias curtas e uma longa série de frases de efeito, sendo que cada um desses elementos não parece sustentar qualquer conexão imediata com os outros. Para seus ouvintes e leitores tudo que o discurso de Jesus deixou foi uma série livre de imagens sem qualquer ordem ou prioridade particular: um videoclipe do reino, por assim dizer. Jesus não fez uma série de conferências, não expôs as quatro leis espirituais, não definiu predestinação nem trindade, não pregou teses na porta do Templo, não apresentou uma vez que fosse o plano da salvação. Ao invés de apresentar um cenário racional e ordeiro, uma visão geral seguida por definições, demonstrações e apêndices, tudo que ele fazia era coçar a barba e dizer: “A que posso comparar o reino?...” Os escritores bíblicos também não compartilhavam do nosso horror tipicamente moderno/racionalista à contradição. O livro de Gênesis, por exemplo, parece narrar a criação de duas formas contraditórias, e até a ascensão do modernismo isso nunca foi motivo de escândalo para ninguém. É racionalista até mesmo o esforço tradicional em conciliar as duas versões. Parece absurdo à mente moderna considerar que as duas possam ser ao mesmo tempo diferentes e verdadeiras: isso seria na nossa opinião relativizar a verdade. Os escritores bíblicos provavelmente chamariam a mesma coisa de transmitir uma profunda verdade espiritual. Como não estava preso aos nossos escrúpulos com a racionalidade, Jesus sentia-se livre para dizer coisas como “Eu sou a luz do mundo” sem temer ser apanhado em contradição com a “verdade” científica de que a Terra é iluminada pelo sol e não por Jesus. Não é como se a realidade espiritual contradissesse ou relativizasse a realidade científica da importância do sol. Não há relativização aqui, embora as duas coisas sejam verdade ao mesmo tempo. Ainda mais revelador é o fato de Jesus ter afirmado ser, ele mesmo, a Verdade com letra maiúscula – tirando dessa forma para sempre a verdade do domínio da razão. Se a verdade é uma pessoa ela não tem como ser comprovada ou refutada pelo método científico. Uma pessoa pode ser no máximo abraçada e experimentada, nunca explicada racionalmente. A Bíblia traz um convite para nos relacionarmos pessoalmente com a verdade, e não um tratado para a comprendermos racionalmente. * * * Jesus nos ensinou e nos ensinou a ensinar através de narrativas, não de conceitos e abstrações. A narrativa é a forma menos dogmática de se ensinar, mas está longe de ser inofensiva: nas mãos de Jesus a narrativa era um irresistível saca-rolhas: denunciava subterfúgios e exigia posicionamento. O filósofo alemão Arthur Schopenhauer, influenciado genericamente pelo pensamento da modernidade e especificamente pelo racionalismo de Kant, opinava que a Bíblia apresenta uma tremenda desvantagem para uma obra com a pretensão de ser livro sagrado: sua natureza narrativa - o fato de ser e contar, essencialmente, uma história. Nossa obsessão com teologia demonstra que pensamos como ele. Precisamos ser constantemente lembrados que antes da teologia havia a narrativa. Nossa história pessoal repete a do cristianismo. Aprendemos logo a expressar e compreender a nossa fé sob a forma de conceitos e abstrações: idéias como salvação, remissão, morte substitutiva, eleição, trindade, onisciência, justificação e predestinação; coisas que habitam uma dimensão paralela fora do tempo e da experiência do dia-a-dia. O judaísmo (e o cristianismo do Novo Testamento) convidam-nos a entender a nossa vocação de um ponto de vista narrativo. O que os judeus sabem é que fazem parte de uma história singular e é isso que os define e lhes basta. Não há espaço para teologia porque não há simplesmente necessidade dela. A diferença de visão de mundo entre judeus e cristãos fica mais espetacularmente evidente quando se compara o credo de um com o de outro. A profissão de fé judaica, a ser repetida anualmente pelo adorador quando trazia ao santuário os primeiros frutos da colheita, encontra-se no trecho entre o quinto e o décimo verso do vigésimo-sexto capítulo do livro de Deuteronômio. E diz o seguinte: Arameu prestes a perecer foi meu pai, e desceu para o Egito, e ali viveu como estrangeiro com pouca gente; e ali veio a ser nação grande, forte e numerosa. Mas os egípcios nos maltrataram, e afligiram, e nos impuseram dura servidão. Clamamos ao SENHOR, Deus de nossos pais; e o SENHOR ouviu a nossa voz e atentou para a nossa angústia, para o nosso trabalho e para a nossa opressão; e o SENHOR nos tirou do Egito com poderosa mão, e com braço estendido, e com grande espanto, e com sinais, e com milagres; e nos trouxe a este lugar e nos deu esta terra, terra que mana leite e mel. Eis que, agora, trago as primícias dos frutos da terra que tu, ó SENHOR, me deste. Entre outras coisas, essa liturgia evidencia como a religião judaica transformou um evento eminentemente circular, a celebração anual da colheita, num momento que celebrava uma cosmovisão linear – Deus está envolvido nos eventos da vida do seu povo – através da rememoração da primordial história do Êxodo. O que acho especialmente notável nessa confissão de fé é o fato dela ser totalmente narrativa; interpretativa por certo e talvez tendenciosa, mas inteiramente livre de abstrações e de necessidades teológicas. O adorador reconhece a mão de Deus na história do seu povo e na sua própria, e é grato por ela. Ponto final. Nenhuma tentativa de explicar a natureza de Deus ou destrinchar o seu plano. Nenhuma ambição de expor o mecanismo do universo ou da salvação. Compare com o credo dos apóstolos: Creio em Deus Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra; e em Jesus Cristo um só seu Filho, Nosso Senhor: o qual foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu de Maria Virgem, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu aos infernos, ao terceiro dia ressurgiu dos mortos, subiu aos céus, está sentado à mão direita de Deus Pai Todo-Poderoso, de onde há de vir a julgar os vivos e mortos; creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na comunhão dos Santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna. Amém. Apesar do cerne narrativo que mantém o cristianismo na estatura linear, cravando Jesus num momento específico da história, o credo apostólico é um campo minado: cuidadosíssimo jogo de palavras em que cada termo inocente remete a um complexo conceito teológico correspondente. Algumas das expressões e conceitos do credo que apontam para seus próprios tratados de teologia: 1. Deus Pai 2. Deus Todo-Poderoso 3. Criador do céu e da terra 4. Jesus Cristo um só 5. Jesus Cristo seu Filho 6. Jesus Nosso Senhor 7. concebido pelo poder do Espírito Santo 8. Maria Virgem 9. desceu aos infernos 10. está sentado à mão direita de Deus 11. julgar os vivos e mortos 12. Espírito Santo 13. Santa Igreja 14. Igreja Católica 15. comunhão dos Santos 16. remissão dos pecados 17. ressurreição da carne 18. vida eterna Isso, naturalmente, em poderoso contraste com o caráter límpido da profissão de fé de Deuteronômio, que por ser narrativa – uma história – pode ser lido e assimilado de imediato por qualquer um. O judeu, em seu credo, recorda o que Deus fez na história e retraça a atividade divina do nascimento do seu povo até o preciso momento presente e sua precisa benção. O cristão, no seu, estabelece distinções e categorias que pressupõe fundamentais, define termos e parece crer que o que caracteriza sua fé pessoal está na sua capacidade de elencar e abraçar uma série precisa de crenças corretas. * * * Muitos pensadores cristãos, em particular Philip Yancey e Ricardo Gondim, tem chegado à conclusão que a visão mais acurada a respeito de Deus não está confinada nos tratados de teologia sistemática, mas viva nas obras de ficção e nos exercícios de narrativa - muito claramente em romances como os de Vitor Hugo, Dostoiévski e Tolstoi. Mas até que ponto chega a supremacia da narrativa? Tolkien cria que a narrativa cristã era poderosa o bastante para redimir toda a obra criativa do homem, expressa em todos os mitos e lendas de todas as culturas. Graças à narrativa cristã, diz ele, a arte "foi comprovada". Eu ousaria dizer que, analisando a Narrativa Cristã por esse prisma, tem sido há muito meu sentimento (jubiloso sentimento) que Deus redimiu as criaturas criadoras-de-corrupção, os homens, de um modo que incluiu também esse aspecto, tanto quanto os outros, de sua estranha natureza. Os evangelhos contém um conto de fadas, ou uma narrativa de natureza mais abrangente que abarca toda a essência dos contos de fadas. Eles contém muitas maravilhas, particularmente artísticas, belas e emocionantes: “míticas” em sua significância perfeita e suficiente e ao mesmo tempo poderosamente simbólicas e alegóricas – e entre as maravilhas a maior e mais completa concebível é a eucatástrofe. O nascimento de Cristo é a eucatástrofe da história humana. A ressurreição é a eucatástrofe da narrativa da Encarnação. Essa história começa e termina com júbilo. Ela exibe de forma proeminente aquela “consistência interna de realidade”. Não há história jamais contada que os homens prefeririam que fosse verdadeira, e nenhuma que um maior número de homens céticos tenha aceitado como verdadeira por seus próprios méritos. Pois a sua Arte exibe o tom supremamente convincente da Arte Primeira, isto é, da Criação. Rejeitá-la conduz à loucura ou à ira. Mas no Reino de Deus a presença do maior não deprecia o menor. O homem redimido é ainda homem. Contos e fantasias persistem ainda, e devem persistir. O Evangelho não abrogou as lendas; ele as santificou, especialmente no que diz respeito ao seu “final feliz”. O cristão tem ainda de trabalhar, com sua mente e com seu corpo, para sofrer, esperar e morrer; porém ele agora percebe que suas inclinações e faculdades têm um propósito que pode ser redimido. Tamanha é a dádiva que lhe foi concedida que ele é capaz agora, talvez, de intuir que pela Fantasia ele pode de fato contribuir no processo de esfoliamento e variado enriquecimento da criação. Todos os contos podem tornar-se realidade; e ainda assim, ao final, depois de redimidos, eles podem se mostrar tão similares e distintos das formas que damos a eles quanto o homem, finalmente redimido, será similar e distinto ao caído que agora conhecemos. Não é difícil imaginar a tremenda empolgação e alegria que se faria sentir se descobríssemos que algum conto de fadas particularmente belo se mostrasse “primariamente” verdadeiro, sua narrativa se provasse factualmente histórica, sem que ele ainda assim perdesse necessariamente a significância mítica e alegórica que possuía. Não é difícil, pois não se requer que nos esforcemos de modo a conceber algo de qualidade desconhecida. Esse júbilo teria exatamente a mesma qualidade, se não o mesmo grau, do júbilo que produz a “reviravolta” final num conto de fadas: um júbilo tal que exibe o sabor distinto de verdade primária (de outro modo não poderia ser chamada de Júbilo). Ele antecipa (ou reporta ao passado – a direção temporal não é nesse sentido importante) a Grande Eucatástrofe. O júbilo cristão, a Glória, é da mesma natureza; ele é porém proeminentemente (infinitamente, se nossa capacidade não fosse finita) elevado e regozijante. Pois essa história em particular é suprema – e é verdadeira. A Arte foi comprovada. Lenda e História encontraram-se e fundiram-se. Deus é Senhor de anjos, homens e elfos. (J. R. R. Tolkien, autor de O Senhor dos Anéis Sobre contos de fadas, epílogo).

domingo, 20 de junho de 2010


A Dupla Predestinação: os eleitos e a multidão dos condenados
Jürgen Moltmann

(Professor de Teologia Sistemática na Eberhard Karls Universität Tübingen, Alemanha)
Traduzido por José Luiz M. Carvalho

Os pontos fortes da Teologia Reformada são, ao mesmo tempo, suas fraquezas. Para se tornar apto para o século 21 no âmbito comum da teologia ecumênica e no âmbito universal da humanidade e do mundo, parece necessário reformular a força da Tradição Reformada. Isto não significa adaptar a nossa tradição em virtude de outras ou integrar nossa originalidade naquilo que é comum a todos, mas encontrar o nosso próprio perfil nas novas realidades do cristianismo e da humanidade. “Se dois estão dizendo a mesma coisa, um deles é supérfluo”, diz um velho provérbio russo. Não é a intenção da comunidade ecumênica e do diálogo inter-religioso tornar supérfluos os outros. A diferença é sempre interessante.

Desde João Calvino e Teodoro Beza, o fundador da ortodoxia reformada no século XVII, o “calvinismo” ficou famoso, por um lado, e notoriamente acusado, por outro lado, por causa da doutrina da dupla predestinação: a humanidade está dividida em eleitos aqui e rejeitados acolá. Deus é totalmente livre para escolher quem ele quer e rejeitar a quem não quer. Ambos servem a glorificação de Sua Majestade, e quem pode argumentar com a sublimidade do Deus infinito?

A crença na eleição divina foi e continua sendo, de fato, a força da fé reformada. Ela deu aos crentes uma certeza invencível em sua fé para se saber que não apenas como um ser amado por Deus, e não somente justificado pela graça de Cristo e santificado pela inspiração do Espírito Santo, mas também eleito pela vontade de Deus. A partir desta crença na eleição divina segue-se a confiança na perseverança divina através dos altos e baixos da vida pessoal até a redenção final: não vou cair e nada nem ninguém pode arrancar-me das mãos de Deus. Deus é fiel à sua eleição, Cristo orou por mim para “que minha fé não desfaleça” (Lucas 22:32), a semente divina do Espírito Santo em meu coração nunca irá morrer. Essa crença era o poder de resistência em perseguições , seja para os huguenotes na França ou para os cristãos reformados nos Países Baixos. Marie Durand ficou presa no Tour de la Constança, em Aigues-Mortes no sul da França, durante trinta e oito anos, sustentando e exortando seus companheiros no cativeiro por causa de sua fé , e ali ela fez sua inscrição na famosa pedra.



Mas será que essa força da crença em uma eleição divina significa que o resto da humanidade está perdido e condenado à eternidade como a multidão de corrupção, a massa perditionis como Agostinho chamou? Devemos dizer ao resto do mundo: “Segundo a Bíblia e a nossa crença aqueles que não crêem em Cristo perecerão”, como o presidente da Aliança Mundial das Igrejas Reformadas Choan-Seng Sonq, de Taiwan, afirmou? Há sempre duas explicações diferentes do simples fato de que um e o mesmo Evangelho provoca a crença em uns e descrença em outros. E isto é devido à vontade de Deus ou dos seres humanos. Porque os crentes confessam que devem a sua fé à graça de Deus, eles vêem com descrença a desgraça de Deus. Uma vez que eles se sentem em sua fé “eleitos”, eles podem ver na incredulidade apenas “rejeitou” as pessoas. A outra explicação refere-se à livre escolha da vontade humana: Aqueles que decidiram por Cristo vêem o céu como o seu futuro eterno, e aqueles que se decidem contra Cristo, eles vêem apenas o inferno como o seu futuro ou, mais recentemente, um “não-ser total”. O resultado dos crentes em vista dos incrédulos é o mesmo, seja em Agostinho e Calvino com sua doutrina da dupla predestinação, ou em Pelágio e Erasmo com sua doutrina do duplo efeito da livre escolha humana.



A fé não é apenas a confiança humana em Deus, mas também, e em primeiro lugar, a fidelidade de Deus. É nesse sentido que eu faço apelo a cada crente como uma pessoa em quem Deus confia, em quem Deus está presente e por quem Deus está esperando. Deus acredita em cada pessoa humana. Isso pode ser chamado de “fé objetiva” (Christoph Blumhardt).

Foi Karl Barth, que, após Blumhardt, nos deu uma engenhosa reformulação cristológica da doutrina Reformada da dupla predestinação (Kirchelische Dogmatik II/2). A seqüência de seu argumento é esta:

1. Antes de Deus eleger ou rejeitar alguém, Ele determina-se a ser o Deus do povo: “Eu serei o seu Deus, e vós sereis o meu povo”, é a fórmula do pacto de Israel. Isto pode ser chamado de auto-eleição de Deus.

2. Na paixão e crucificação de Cristo, Deus colocou sua justa condenação do pecado, o mal e a morte em seu próprio Filho. Entre Getsêmani e Gólgota, Jesus sofreu o inferno e a morte eterna por todos nós quando ele clamou: “Deus meu, por que me abandonaste?”

3. Com a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, o inferno e a morte eterna foram, portanto, superadas. A eleição da graça é revelada: “Ó inferno, onde está a tua vitória!” (1 Coríntios. 15:55). A Graça que sai do Cristo ressuscitado é pura graça e, como tal, também incondicional e universal, abrangente e não excluindo ninguém. Este é o conteúdo do Evangelho e não há terror na doutrina da dupla predestinação, ademais.

“A doutrina da eleição é a suma do Evangelho, pois de todas as palavras que podem ser ditas ou ouvidas, o melhor é: que Deus elege o homem, que Deus é para o homem também aquele que ama em liberdade”, disse Karl Barth no § 32 da sua Kirchelische Dogmatik. Por que isso acontece? Porque “Deus tomou sobre si a condenação dos pecadores, com todas as conseqüências, e elegeu o homem para participar na sua glória eterna (§ 33)”. Barth, então, ensina a “dupla predestinação”? Sim! Mas em uma nova forma dialética: Deus tomou sobre si a condenação, a fim de abraçar a todos na sua eleição da graça. Esta é a nova forma dialética da antiga doutrina de “dupla predestinação”.

Evidentemente, esta nova formulação não é uma explicação do fato de que alguns acreditam no Evangelho e outros não. Mas será que realmente precisamos de uma explicação teológica deste fato ou a melhor forma de responder ao fato de que há incrédulos é com um novo e melhor testemunho do Evangelho de que Deus os ama com graça e pagou todos os seus pecados e os sofrimentos por eles? Outra questão é se o universalismo é o resultado desta reformulação. A resposta é “Não”! Porque nós somos testemunhas do Evangelho, não os juízes no julgamento final de Deus. Se Deus, no final, abraçar todos com sua graça transformadora, o fará por Seu amor, a nossa parte é o testemunho do Evangelho a todos. Mas se alguém morre na incredulidade, está automaticamente excluído ou há esperança também para ele? A resposta é: o nosso meio de pregação e oração chegou ao fim com a morte, mas não o poder de Cristo, porque Ele ressuscitou e tem as suas possibilidades com os mortos, pregando o Evangelho até no Hades. Não nos há, portanto, nenhum motivo e nenhum direito para condenar e excluir ninguém, vivo ou morto. Nós não somos os juízes da fé, mas os servos felizes.

Publicado no Bulletin do Institute for Reformed Theology, Primavera/Verão 2001, vol. 2, # 2.

sábado, 19 de junho de 2010


CUIDADO PARA NÃO SERMOS
OS JUIZES DE DEUS...

Texto fora do contexto é pretexto para heresia...

Bem, antes de falar acerca do assunto, falarei de mim e meu contexto... Trabalhei por mais de 7 anos nesta área e fui sócio de um Studio em BH. Trabalhei como piercer e “body modi”, e sendo assim estou totalmente inserido no mundo da tatuagem e do piercing. As tattoo’s e piercings que tenho foram feitas após a minha conversão e todas as tattoo’s têm um significado pra mim que denota a minha fé.

Afirmo que o corpo é templo do Espírito Santo, uma verdade inquestionável... Só que o texto (I Co 6:19) fala de prostituição, de profanar o templo de Deus com o pecado, e não faz nenhuma alusão a qualquer coisa que lembre tatuagens, piercings, comer pimenta, fazer uma maquiagem definitiva ou outra coisa que agrida a pele ou qualquer outra parte do corpo.

Acredito que Deus possa falar ao coração de uma pessoa acerca de tatuagens e piercing’s, com o propósito da mesma não a fazer, ou até mesmo retirar as que têm, não duvido, porém não podemos esquecer que Deus trata com cada um de forma pessoal. Os planos d'Ele para a vida de uma determinada pessoa não são os mesmos para minha, e ambos podemos fazer a vontade d’Ele. Deus não faz acepção de pessoas, e exatamente por este motivo, uma pessoa que tenha os itens relacionados a este estudo, podem ser alcançadas pela mesma graça redentora. Rebeldia é algo muito mais complexo do que tatuagem e/ou piercing. Desrespeitar os pais, não amar seu próximo, julgar as pessoas pela aparência, com certeza é rebeldia.

Antes da época de Jesus, piercing’s e tattoo’s já existiam (Gn 24:22 e 47). Se "pendente de nariz" não é uma perfuração, então não sei mais o que é.

Poderemos ser a imagem de Jesus a partir do momento que vivermos o que Ele viveu, cumprirmos Seus designos e vontades, olhando as pessoas como Ele olhou, sem preconceitos e verdades pessoais, mas cheio de bondade, amor e as "boas novas do evangelho".

O que fazer?

O que a Bíblia fala: Se sua consciência (cristã, é claro) te condena, não faça. Sou membro da Caverna de Adulão, um ministério que trabalha TAMBÉM com pessoas que usam um visual “diferente”, tatuagens e piercings; pra mim, é uma questão cultural, é algo que gosto e que Deus nunca me cobrou.

PIERCINGS, EVANGELHO E CULTURA. *1


Piercings estão cada vez mais comuns em nossos dias. Algo que há menos uma década era olhado com reprovação e preconceito, é hoje visto em homens, mulheres, jovens e até crianças. Se a sociedade parece estar aceitando esses adereços cada vez com mais naturalidade, os cristãos parecem confusos a respeito. Afinal de contas, a questão da aparência ainda é assunto de grande discussão e controvérsia em muitos círculos evangélicos.

A primeira coisa que precisamos ter em mente quando o assunto é aparência pessoal, é que se trata de algo que muda com o tempo e com o lugar. Usos e costumes estão diretamente ligados à cultura.

Basicamente uma cultura é formada por três elementos: cosmovisão (a maneira como um povo vê o mundo), sistema de valores (o importante para aquele povo) e normas de conduta (o modo como um povo se comporta, e isso dizem respeito tanto à vestimenta, como ao modo de se relacionar com os outros, etc.).

Culturas são diferentes de acordo com sua cosmovisão, valores e normas de conduta. Arrotar em público após uma refeição é totalmente aceitável (e até louvável) em certas culturas, e repugnante em outras. Uma mulher com os seios à mostra é normal em muitos países da África (onde a mesma mulher não pode exibir as pernas acima do tornozelo) enquanto que o mesmo é obsceno em outras partes do mundo. Beijar na boca em público é normal aqui no Brasil, mas pode levar alguém à cadeia em certos países islâmicos. Nestes mesmos países islâmicos, um homem não pode andar de mãos dadas com sua esposa, mas pode andar de mãos dadas com outro homem. No Ocidente tal prática evoca idéias de homossexualismo. E por aí vai. Todas essas coisas são formas de expressão cultural. Podem ser um insulto ou algo escandaloso para os de fora (que não fazem parte da cultura), mas não são necessariamente erradas para quem é daquela cultura.

O fato é que nenhuma cultura é totalmente igual à outra e nenhuma está acima da outra. João viu no céu povos de todas as tribos, raças, línguas e nações (grupos étnicos). Todas as culturas possuem elementos que precisam ser valorizados e outros que precisam ser transformados pelo Evangelho.

Sendo a aparência pessoal é uma questão de expressão cultural, esta aparência também muda de acordo com a cultura. Pinturas na face e no corpo estão presentes em diversas culturas. Na Polinésia, os nativos usam a tatuagem para escrever sua história familiar no corpo. A tatuagem e o piercing no umbigo eram comuns no Antigo Egito. Alguns povos usam piercing, brincos e outras formas de alteração do corpo (body modification ou simplesmente body modi).

O problema é que o mundo está ficando pequeno. Estamos nos tornando cada vez mais uma aldeia global. Esta globalização faz com que certos costumes que antes só eram vistos em algumas culturas isoladas e lugares remotos da terra, comecem a se tornar moda em todo o mundo. A tatuagem de henna é um exemplo recente desta realidade.

E quem são os responsáveis pelo lançamento da moda em nosso mundo? Os meios de comunicação em massa, que muitas vezes mostram artistas, músicos e cantores usando determinada roupa, adereço, estilos diferentes muitas vezes copiados por nós, ou porque não dizer, copiados de nós. Isto mesmo!!!

Citando dois exemplo: Os Rapper’s americanos não inventaram um estilo de roupa e ornamentos, eles já existiam, porém foram popularizados pela mídia. A popularização de alguns costumes orientais no Ocidente teve forte influência dos Beatles, quando estavam em sua fase “Flower and Power”. Muitas das batas, camisões e pantalonas que vemos hoje em nossas ruas, praças, e até na igreja, foram uma influência direta da que é chamada a “maior banda de todos os tempos”, porém, são “politicamente aceitas” por muitas de nossas lideranças.

A popularização do piercing foi em 1993 com o vídeo clipe "Cryin", do Aerosmith, onde Alicia Silverstone apareceu com um piercing no umbigo. Uma banda de rock, uma balada romântica, uma jovem atriz linda. Elementos essenciais para fazer a moda pop ou cultura pop, que nada mais é do que uma mistura de culturas e costumes do mundo pós-moderno.

Leornard Sweet, professor metodista e um dos mais interessantes pensadores cristãos de nossa época, comenta sobre tatuagens e piercings em seu e-book recente "The Dawn Mistaken For Dusk". Ele diz que, a razão pela qual "body modi" é o assunto nº.1 nas listas de discussões e bate-papos de jovens cristãos com menos de 30 anos nos EUA, é pelo fato disto fazer parte da cultura jovem pós-moderna atual (e quase global), uma cultura onde a imagem é altamente valorizada.

A ironia disso tudo é que cirurgias plásticas e implante de silicone são coisas cada vez mais aceitas pelos cristãos modernos. Tem personalidades famosas do mundo evangélico brasileiro com o corpo siliconado. Todavia, como diz Sweet, "Cirurgia plástica é uma forma severa de alteração do corpo. Isto é aceito, mas brincos e tatuagens, não são?”.

Na Bíblia lemos à história de Isaque que deu a Rebeca uma argola de seis gramas de ouro para ser colocada no nariz (piercing) e, após fazer isto, ajoelhou-se para adorar a Deus. Penso que se o primeiro ato fosse pecado ou considerado pagão, então Isaque não teria adorado a Deus em seguida.

No livro de Êxodo, percebemos que as mulheres dos hebreus usavam brincos e argolas, os quais foram oferecidos como oferta dedicada ao Senhor para a construção do Tabernáculo. Novamente, não penso que Deus aceitaria de seu povo ofertas que representassem costumes pagãos.

O texto mais intrigante para mim se encontra em Ez 16.11-12: “Também te adornei com enfeites, e te pus braceletes nas mãos e colar à roda do teu pescoço. Coloquei-te um pendente no nariz, arrecadas nas orelhas, e linda coroa na cabeça” (ARA), onde o próprio Deus diz que adornou Jerusalém com jóias, pulseiras, colares, argolas para o nariz e brincos para as orelhas. Ao que parece, tais adornos não eram uma ofensa ao Senhor.

Uma vez que a Bíblia parece não condenar o uso de piercing, por que deveríamos nós?

Nosso desafio não é condenar, mas orientar as pessoas (principalmente os jovens) para os riscos que existem em fazer estas coisas sem uma orientação profissional e cuidados de higiene e saúde.

A pessoa está consciente dos riscos de inflamação, doenças contagiosas e "efeitos colaterais" diante da sociedade? Está consciente de que algumas alterações são irreversíveis e, mesmo diante da possibilidade de reversão, podem deixar marcas para o resto da vida? Mais ainda, precisamos falar sobre questões de identidade, valor pessoal e auto-imagem. Pois são estas as questões mais importantes para quem está considerando qualquer forma de alteração do corpo, seja uma plástica no nariz, implantar silicone, colocar um piercing ou fazer uma tatuagem.

TATUAGEM
EXEGÊSE E HERMENÊUTICA *2


Podemos perceber que a palavra tatuagem tem sido muitas vezes tratada de forma repugnante no meio cristão, mas nem sempre é explicado o porquê.

O propósito deste estudo é analisar a palavra utilizando o contexto em que ela foi empregado para assim, compreendermos o seu emprego nas Escrituras.


REFERÊNCIAS BÍBLICAS:

Lv 19:27-28 – “Não farão calva na sua cabeça e não cortarão as extremidades da barba, nem ferirão sua carne. Santos serão ao seu Deus e não profanarão o nome do seu Deus, porque oferecem ofertas queimadas do SENHOR. Pelos mortos não dareis golpes na vossa carne; nem fareis marca alguma sobre vós. Eu sou o SENHOR.”

Dt 14:1-2 – “Filhos sois do SENHOR, vosso Deus; não vos darei golpes, nem sobre a testa fareis calva por causa de algum morto”. Porque sois povo santo do SENHOR, vosso Deus, e o SENHOR vos escolheu de todos os povos que há sobre a face da terra, para lhe serdes seu povo próprio.

ANÁLISE DOS VERSÍCULOS

- Não ferireis a vossa carne. -
Essa é uma proibição contra as mutilações. Muitos povos pagãos lamentavam-se desse modo pelos mortos. Quem lamentava por um morto cortava-se como se fosse um sinal de consternação pela morte de um parente ou amigo, pensando que isso adicionava algo à sinceridade de sua lamentação. Tais atos eram estritamente proibidos em Israel. (Jr 16:6, 41:5; Lv 21:5 e Dt 14:21).

- Nem fareis marca nenhuma sobre vós.
A tatuagem era praticada entre várias nações antigas, algumas vezes em conexão com as práticas da idolatria. Figuras, marcas ou letras eram tatuadas sobre a pele mediante a injeção de tintas na epiderme. Queimar com ferro em brasa era outra maneira de tatuar. Um escravo tinha a marca de seu proprietário impresso sobre ele; as prostitutas também eram assim marcadas; palavras sagradas eram tatuadas na pele dos adoradores pagãos.

- Eu sou o Senhor.
Essa forma, como aquela mais completa, “eu sou o Senhor teu Deus”, assinala divisões no livro de Levítico, o que acontece por dezesseis vezes, só neste capítulo dezenove de Levítico.

Formar os cabelos em curva redonda nas têmporas e na barba, ou a incisão de padrões na pele faziam parte das práticas pagãs de luto, e, como tais, eram proibidas. Desfigurar a pele, que provavelmente incluísse alguns emblemas das divindades pagãs, desonrava a imagem divina de Deus. A perda de um ente querido devia ser aceita como parte da vontade de Deus para a vida do indivíduo, e nenhuma tentativa deveria ser feita para propiciar o falecido de qualquer maneira.


ANÁLISE LEXOGRÁFICA

Esta palavra portuguesa vem do Taitiano “tatau”, a reduplicação da palavra “ta”, que significa “marca”, “sinal”. Está em foco, uma marca indelével, feita mediante técnicas próprias, picando a pele e inserindo algum pigmento sob a mesma. Embora, provavelmente, não haja nenhuma alusão direta à técnica da tatuagem nas páginas da Bíblia, essa tem sido considerada uma interpretação possível em três situações aludidas na Bíblia, a saber:


1. Oth – sinal

Palavra usada por setenta e nove vezes no Antigo Testamento, conforme se vê, por exemplo, em Gn. 1.14; 4.15; Ex. 4.8,9, 17, 28,30; Nm. 14.11; Dt. 4.34; 6.8,22; Js. 4.6; Jz. 6.17; I Sm. 2.34; II Rs. 19.29; Ne. 9.10; Sl. 74.4,9; Is. 7.11,14; 8.17; Jr. 10.2; Ez. 4.3; 20.12,20.

O termo Grego correspondente é semeîon - sinal -, usado por quarenta e oito vezes, conforme se vê, por exemplo, em: Mt. 12.38; Lc. 2.12; Jô. 2.18; At. 2.19, 22, 43; Rm. 4.11; I Co. 1.22; II Co. 12.12; II Ts. 2.9; Hb. 2.4; Ap. 15.1.


2. Chaqaq - gravação, cavar

Com esse sentido, é usada por duas vezes: Is. 22.16 e 49.16. Na última dessas referências, a idéia é que, gravando os nomes de Seu povo em Sua mão, jamais se esqueceria deles.

3.Seret - incisão, corte

Essa palavra só aparece em Lv. 19.28, onde se lê: “Pelos mortos não ferireis a vossa carne; nem fareis marca alguma sobre vós. Eu sou o SENHOR”. O termo Seret é traduzido ali como ferireis. Isto pode até parecer uma clara proibição do uso de tatuagens, entre os judeus.

Alguns tem pensado que o trecho de Lv 19.28, sem dúvida, alude à prática da tatuagem. Mas, embora algumas versões estrangeiras tenham traduzido o vocábulo hebraico seret, ali usado, como tatuar, os estudos feitos quanto aos costumes de lamentação e luto pelos mortos indicam freqüentes associações de cortes feitos no corpo ou pinturas, com o raspar dos cabelos, mas nunca com tatuagens, que se revestem de outro sentido. Por semelhante modo, qualquer situação retratada nas Escrituras que possa ser interpretada como indício da prática das tatuagens tem base meramente conjectural, e não se escuda sobre qualquer inferência etimológica ou etnológica.

Ao usar hoje esse texto do Antigo Testamento, muitos caem em desobediência pelo fato inocente de raspar a barba para se apresentar em um emprego, cortar o cabelo ou raspa a cabeça em comemoração por ter passado no vestibular. Ao contrário, se formos nos ligar as leis cerimoniais do Antigo Testamento, quanto maior a consagração, maior terá que ser o tamanho do cabelo e da barba, conforme a consagração dos nazireus e dos sacerdotes (Lv 21:5; Jz 6:5; 13:5; 16:17; I Sm 1:11). Mas nós sabemos que esses detalhes da lei cerimonial do Antigo Testamento não são pertinentes para os dias de hoje, para os que vivem pela graça e debaixo das orientações do Novo Testamento.

Sandro Baggio diz que os que não aceitam a tatuagem também teriam que ser automaticamente proibidos de comer carne de coelho, porco, camarão, lagosta, ostras, e moluscos, misturar raças de gado, misturar linho com lã, raspar ou aparar a barba (Lv 11:6-7; 11:10-12; 19:19e27). Então, se você alguma vez comeu um sanduíche de porco, comeu lagosta, aparou a barba, usou uma roupa de linho forrada com lã – ou fez uma tatuagem, você é culpado sobre a lei!

Se a tatuagem começa num contexto secular, (como certos costumes que começaram neste contexto e, com o passar do tempo são naturalmente usados. Exemplo: Soltar fogos de artifício em celebrações, quando a pólvora foi descoberta pelos chineses com finalidade de exorcizar os maus espíritos; o uso da palavra coitado que originalmente tem seu sentido em coito, quando os senhores de engenho acoitavam as meninas que entravam na fase adulta) cabe a nós resgatar a tatuagem de seu contexto secular e usá-la para a glória de Deus.

A ORIGEM DO PRECONCEITO

O preconceito contra a tatuagem tem sua origem na Idade Média, quando a Inquisição perseguia brutalmente, prendia e queimava na fogueira qualquer pessoa que portasse uma cicatriz, marcas de nascença, mancha na pele, uma deformação física qualquer, desenho ou tatuagem, sendo acusada de bruxaria e de ter pacto com o demônio. Hoje em dia, os reflexos dessa perseguição religiosa se revelam na perseguição social, onde o preconceito faz com que as pessoas que se tatuam sejam discriminadas e sejam vistas como nocivas à sociedade. No entanto, esse pensamento tem mudado nos últimos tempos, quando hoje se vê pessoas de faixas etárias diferentes, de variadas profissões e classes sociais diversificadas como artistas, designers, executivos, publicitários e cristãos sinceros de todos os níveis portando tatuagens.

Infelizmente, a história tem mostrado que a Igreja, que ao se propor a ser uma contracultura através das eras, e que deveria estar acima dos padrões, valores e ideologias da sociedade, no entanto, tem se curvado às tendências políticas e às imposições que a sociedade impõe, deixando-se desfigurar e perder a força de seu desiderato profético, se tornando conivente e absolutamente omissa diante de aberrações cometidas por líderes megalomaníacos, de injustiças sociais e atrocidades impetradas por regimes totalitaristas como foi o caso do nazismo na Alemanha e Itália, do racismo nos Estados Unidos, e do regime militar no Brasil. E é com pesar se pensar que a igreja evangélica tenha herdado do catolicismo romano o preconceito contra a tatuagem perpetuada na idade média, e hoje mantenha esse preconceito contra o uso de tatuagem e contra quem quer que seja diferente do padrão burguês que a sociedade impôs à igreja e lamentavelmente ela aceitou, ficando amarrada à camisa de força do preconceito que drena o amor e represa sua ação diante do mundo.

TATUAGEM À SERVIÇO DO REINO

Existem vários ministérios direcionados as tribos urbanas que visam à conversão dos undergrounds e usam a tatuagem como gancho de evangelismo, tais como: A Caverna de Adulão, Ministério Bola e Neve, Base Avalanche, Ministério Ágape, Comunidade Sal da Terra, Comunidade S8, Projeto 242, Movimento Gerações Emergentes da AD2010, Tribal Generation, Survivor, o ministério CTA (Christian Tattoo Association) que é liderado por tatuadores cristãos e utilizam a tatuagem como ponte de evangelização. A CTA tem os seguintes propósitos:

1. Pregar o Evangelho para artistas tatuadores e entusiastas através de impressos, testemunho pessoal, workshops e promover encontros com grupos pequenos em eventos locais e convenções nacionais.

2. Promover saúde e assuntos de segurança no campo da tatuagem e encorajar estandartes morais e profissionais na indústria das tatuagens. Mas seu objetivo principal é pregar o evangelho àqueles no mundo da tatuagem primariamente através de evangelismo pessoal.

CONCLUSÃO

A tatuagem, assim como a edificação de cidades, a música e a indústria são subprodutos do contexto secular pós-queda. A Bíblia não condena marcar o corpo com uma tatuagem (quando esta, não está ligada a rituais satânicos, à sensualidade ou à violência)

Nos comentários das Bíblias de Estudo de Genebra e Plenitude, apenas relatam o fato de não marcarem o corpo com mutilações por causa dos mortos, não referindo diretamente à prática de Tatuagem.

Contudo observando historicamente as práticas de outras nações, o povo de Israel é advertido a não praticar tais atos para que não fossem confundidos, e por tais atos estarem diretamente ligados à idolatria e à prostituição.

No âmbito geral da situação, percebemos que isso era uma prática cultural, não transcendendo, em alguns casos, aos dias de hoje.

É importante lembrar, que não devemos ser escândalo para nossos irmãos:

Rm 14:13 - “Portanto não nos julguemos mais uns aos outros; antes o seja o vosso propósito não pôr tropeço ou escândalo ao vosso irmão”.

II Co 6: 3 - “... não dando nós nenhum motivo de escândalo em coisa alguma, para que o nosso ministério não seja censurado”.

A prática da tatuagem nos dias de hoje tem sido uma forma de expressão por parte de muitos jovens. Ao contrário dos tempos em que Israel foi advertido, a tatuagem hoje tem um sentido bem diferente. Isso não isenta algumas culturas de praticarem o ato como forma de idolatria, mas no Brasil o sentido tem sido apenas uma forma de expressão.

Meu comentário pessoal e crítico sobre o assunto é que a tatuagem não impede a pessoa de ter um relacionamento intimo com o Senhor, porém deve-se observar alguns pontos antes de se fazer uma tatuagem.

Devemos antes de tudo preservar a santidade, no que se diz respeito ao corpo e o fato de que podemos estar servindo de motivo de escândalo e zombaria de outrem.

Penso que o evangelho de alguns se tornou muitíssimo frágil, quase um paganismo dualista esotérico, por entenderem que uma simples tatuagem venha a ser porta para entrada de demônios. Outros dizem, influenciados por pressupostos da idade Média, que é a marca da besta. Outros asseveram que fazer tatuagens é profanar o templo do Espírito Santo. Essa fragilidade de fé gera um evangelho legalista, que torna a salvação totalmente vulnerável, por entender que pequenas falhas, pecados e deslizes, ou mesmo se distrair, ler um romance, ir ao cinema, buscar cultura, gostar de arte e aplicar um piercing ou uma tatuagem são motivos suficientes para levá-las ao inferno, ou no mínimo, motivo para se desconfiar da espiritualidade delas, pelo simples fato de serem diferentes.

Quem assim crê não conhece as fraquezas peculiares dos servos de Deus que estão abertamente registradas nas Escrituras, suas personalidades diversificadas, não conhecendo a extensão da Graça de Deus e o alcance da Obra de Cristo na cruz do Calvário. Estes, por sua fragilidade de fé, ficam constantemente apavorados por ameaças do inferno, e por nunca terem estudado as Escrituras e se apropriado de Suas promessas, vivem amedrontados, acuados pelos demônios e acossados por seus próprios fantasmas interiores. Oro para que tenham a visão de que quem está em Cristo é trabalhado a cada dia para ser conforme a imagem de Cristo, tendo sido salvo, justificado, santificado e já glorificado aos olhos de Deus (Rm 8:29,30), marcado para a vida, separado e absolutamente protegido por seu precioso sangue (Rm 8:31-39; II Tm 4:18) e catapultado para a vida eterna deste antes da fundação do mundo (Mt 25:34; Ef1:4; Ap 17:8).

Todas as palavras acima também são cabíveis ao uso de Body Piercing, Cirurgias Plásticas, Lipoaspirações e qualquer tipo de dilaceração do corpo que não seja necessário à saúde. Sendo assim, toda forma de dilaceração que não há envolvimento com os rituais pagãos não se encaixam em Lv. 19:28 - Texto esse que muitos tomam como base para proibirem a tatuagem.

Apenas um pequeno comentário acerca de um erro de exegese ocorrido por quem defende o uso de tatuagens, mostrando assim que uma tradução mal feita do texto, deixa margem para erros de ambas as partes:

Apocalipse 19:16: “No manto, sobre a sua coxa tem escrito o nome: Rei dos reis e Senhor dos senhores.”

Em algumas versões, o termo “escrito o nome” é trocado por tatuado.

Vamos quebrar a frase:

Sintaticamente, temos o seguinte:

- Sujeito da Frase: Coxa
- Objeto Direto da Frase: Nome
- Vocativo referente ao sujeito: No Manto

Por definição temos que vocativo é:
"...É uma referência à 2ª pessoa, um apelo, um chamado, e é usado para o nome que identifica a pessoa (animal, objeto etc.) a quem se dirige e/ou ocasionalmente os determinantes de tal nome. Uma expressão vocativa é uma expressão de referência direta, em que a identidade da parte a quem se fala é expressamente declarada dentro de uma oração..." (Wikipedia)

Portanto, o que quer dizer na frase não é que o nome esteja tatuado na coxa, mas sim escrito no Manto na altura da coxa.

Vamos ao original em Latim:
19:16 - et habet in vestimento et in femore suo scriptum rex regum et Dominus dominantium.

Ressalto que o verbo empregado é SCRIPTUM, ou seja, escrito!!! Para que seja tatuado, o verbo a ser utilizado deveria ser PINGERE, ou seja:

19:16 - et habet in vestimento et in femore suo pingerum rex regum et Dominus dominantium.

Em Grego temos:

19:16 - kai ecei epi to imation kai epi ton mhron autou to onoma graphammenon basileuV basilewn kai kurioV kuriwn.

O verbo “escrever” em grego é: graphon; já o verbo “tatuar” em grego é: prosanagrapheia.

O QUE É ESCANDALIZAR???

Alguns preferem adotar uma postura mais defensiva sobre o assunto sem se aprofundar demais em debates, dizendo que tais adereços devem na verdade ser evitados porque é "escândalo".

Não devemos "escandalizar". Mas o que é "escândalo"?

Jesus disse que "é impossível que não venham escândalos, mas ai do homem pelo qual eles vêm! Melhor fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma pedra de moinho, e fosse atirado no mar, do que fazer tropeçar a um destes pequeninos." (Lucas 17:1,2).

A conclusão lógica a que chegamos então é que se eu uso um visual diferente do resto da massa e alguém me vê e se "escandaliza" (no sentido que eles dão à palavra), então, de acordo com o versículo, seria melhor que alguém amarrasse uma pedra de moinho no meu pescoço e me jogasse no mar.

Será isso que Jesus quis dizer? Creio que não.

A palavra "escândalo" no grego é "skándalon" (de onde se derivou a palavra portuguesa escândalo) e significa tropeço ou armadilha, símbolo daquilo que incita ao pecado ou à perda da fé.

Escândalo é todo ensino, palavra, obra ou omissão que incita o outro a pecar.

Um visual underground por si só não é escândalo no sentido bíblico do termo. Escândalo seria, em nosso caso, o exemplo citado anteriormente neste texto em que uma mulher é levada a usar um piercing no umbigo apenas por uma motivação luxuriosa. Agindo assim, ela voluntariamente poderia despertar em outras pessoas desejo sexual por estar expondo determinada parte de seu corpo, ou seja, poderia estar incitando alguém a pecar. De outra forma, não é escândalo.

Particularmente, conheço muitas mulheres (não cristãs inclusive) que têm piercing no umbigo mas que nunca vi usando uma blusa que o expusesse; dizem que o usam simplesmente porque gostam. Não há problema algum nisso.

Quando os setenta (ou 72, há dúvidas) tradutores do Velho Testamento para a língua grega (a Septuaginta), por ordem e encomenda de Ptolomeu II, encontraram um termo hebraico que se referia ao comportamento que levava a uma "queda" moral - o que não tinha exata tradução - socorreram-se da palavra grega clássica skandalon, "obstáculo", algo que causava um tropeço. Uma pedra no meio do caminho, por exemplo, era skandalon. Fossem paisagens tropicais, skandalon podia ser uma simples casca de banana.

A palavra passou-se depois para a Bíblia latina, a Vulgata, onde se encontra, em várias passagens, a palavra scandalum. O sentido moderno de "escândalo" evoluiu, e não é mais só a causa de uma queda; é também o seu efeito público. Por outro lado: se dissermos ser salutar evitar um escândalo, soaremos... óbvios.

Óbvio? Pois ÓBVIO é - na raiz - precisamente isso, "o obstáculo evitado", já que é formação latina de ob-, "em direção a" + viam, "caminho", estrada", donde o "óbvio" ser um caminho livre, é claro! [Francês medieval SCANDALE, "causa de pecado" < Latim SCANDALUM, "pedra de tropeço", "obstáculo", "tentação" < Grego SKANDALON, mesmo sentido.]

A raiz etimológica de "escândalo" é "matar a fé". Muito parecida com apostasia...

Vemos em varias passagens do NT, Jesus questionando o pseudo-escândalo dos religiosos para com seus atos, e até onde sei, Jesus nunca matou a fé de ninguém...

Uma grande confusão é formada quando se fala de escândalo, pois a palavra é muitas vezes confundida com contraposição. O que eu não concordo, muitas vezes me choca, me constrange, mas nem sempre me escandaliza, no sentido real da palavra.

Vc ver um filme na “sessão da Tarde”, onde mostra nudez, certamente te deixará indignado, mas isto com certeza não fará vc deixar de congregar, nem te induzir a apostatar da fé, a não ser que realmente vc não tenha fé nenhuma, e sendo assim, não fará grande diferença.

Que pessoas escadalizariamos??? Nos referimos a cristãos ou não cristãos???

Se o sentido é para os cristãos, como disse acima, o conceito de escândalo é "matar a fé", e não apenas gerar uma polêmica, um espanto... A pessoa que morre na fé, me desculpe a sinceridade, nunca foi cristã... Apostasia é um ato dos que acham que são, e não dos que realmente são alcançados pela Graça.

Agora, se nos referimos a não cristãos, uma pessoa que perde ser tempo vendo BBB e acha legal; que vê as cenas de nudez que passam em nossas televisões em filmes de "Sessão da Tarde", e mesmo que pseudo-indignadas não fazem nada e continuam vendo; que deixam seus filhos ver "Malhação", onde a virgindade é mostrada como caretice e banalidade; que consideram o Roberto Jeferson um herói porque denunciou o esquema do "Mensalão" (o qual ele fazia parte); que sonegam impostos e mentem em suas declarações; que aceitam seus filhos levarem seus namorados em suas casas e ficarem trancados no quarto 3 horas seguidas; será que realmente podemos acreditar que estas pessoas vão se escandalizar com uma "Estrela de Davi" tatuada no ombro de uma guria???

COM RELAÇÃO À SENSUALIDADE E VAIDADE...


Bom, na grande maioria das vezes, o piercing, a tatuagem, a maquiagem, a cirurgia plástica tem caráter puramente estético.

A sensualidade não está no piercing ou tatuagem que uma determinada pessoa possa estar usando, independente do lugar, mas está na pessoa.

Existem pessoas tão "sem sal" que mesmo esta usando a roupa mais decotada do mundo, um piercing do tamanho de um puxador de cortina, ela continua "apagada". De contra partida, existem mulheres e homens, que independente de acessórios, chamam a atenção para si quase que naturalmente.


Dentro de nosso contexto evangelical, acho que o melhor a se pensar é o porquê de você querer usar um piercing ou uma tatuagem, independente de qualquer outra coisa.


Claro que as tatuagens que tenho e os piercings que coloquei estão ligados a não apenas meu estilo de vida, mas também a questões estéticas, o problema é deixar este lado tomar conta de você e te controlar.

Uma pessoa que não usa "nada", pode ser muito mais vaidoso que eu, por exemplo (este "nada" acima esta diretamente ligado ao fato de não ter nenhuma tatuagem ou piercing, mas usar um terno "Armani", uma Gravata “Louis Vuitton”, uma caneta “Mont Blanc”, Cuecas “Christian Dior” ou mesmo um relógio “Tag Heuer”).


Vaidade é tudo aquilo que toma o espaço de Deus em nossa vida, o vazio completado pelo vazio.


Alguém pode aparentar ser “a pessoa mais humilde de mundo”, e usar desta sua "humildade" para se alto promover, mostrando as demais que é mais humilde que elas (soberba). Estranho, né??? Mas, infelizmente, real.

Fiz esta ressalva, a fim de deixar claro o meu ponto de vista acerca da sensualidade.

Em um site “Gospel” (porque protestante e/ou evangelical não é e nunca será...), li certa vez que para cada piercing que uma determinada pessoa aplica, a mesma consequentemente "abre brechas" para um determinado demônio atuar em sua vida:

Nariz - significa “domínio”;
Sobrancelhas – “aprisionamento da mente”;
Orelhas “aprisionamento em áreas específicas”;
Umbigo – “males digestivos”;
Lábios – “domínio da fala”;
Genitais – “prostituição”.

Será que os cravos colocados em nosso salvador abriram brechas para demônios no momento da crucificação???

Isto é ridículo, patético e sem nenhuma base hermenêutica nem exegética. Nada disto é mencionado na bíblia.

Qual a fonte então??? Algum demônio disse, pois se está for à fonte, menos crédito devemos dar, pois é sabido de todos que ele é o "Pai da Mentira".

Entristece-me saber que a falta de sinceridade, de conhecimento teológico e em casos extremos, de caráter em alguns ministérios, faz com que mentiras sejam ensinadas a pessoas simples, única e simplesmente por medo de se perder o controle das mesmas que ali congregam ou de ser criticado por pessoas religiosas e cheias de si, mas com muito pouco de Deus...

...e o pior, comprova a carência de bíblia e a falta de sabedoria de muitos evangelicalistas.

PROIBIR É MAIS FÁCIL QUE ENSINAR...


Deus nos abençoe muito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

• CHAMPLIM, RUSSEL N. - Antigo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. - Ed. Hagnus.
• CHAMPLIM, RUSSEL N. - Enciclopédia da Bíblia Teologia e Filosofia - Vol. 6-S/Z - Ed. Hagnus.
• BOYER, O.S. - Pequena Enciclopédia Bíblica. - Vida.
• HARRISON, R.K. - Levítico - Introdução e Comentário - Ed. Mundo Cristão.
• MACHO, ALEJANDRO DIEZ; BARTINA, SEBASTIÁN - Enciclopédia de la Bíblia - Vol. 6-Q/Z - Ed. Garriga.
• YOUNG, BRAD H. - Comentário de Levítico - Bíblia de Estudo Plenitude.
• Vários Teólogos - Comentário de Levítico - Bíblia de Estudo de Genebra.
• BAGGIO, SANDRO – Material disponibilizado pela internet (pastor do Projeto 242 em São Paulo).
• JUNIOR, ALBERTO E. REIS - Bacharel em Teologia - STEB 2004.
• FILHO, MANOEL DO CARMO – Material disponibilizado pela internet (pastor do Abrigo R15 em Manaus).
• FAGURY, SAMUEL LIMA – Material disponibilizado pela internet (http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=1445227&tid=2461663799960137519&start=1).
• CRUZ, VLADMIR BARBEIRO DA – Material disponibilizado pela internet (http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=5059818&tid=2477773485699706104 )
• Textos encontrados em vários sites da Internet.
• *1 e *2 = Textos de Sandro Baggio e Alberto Reis, com acréscimos do autor do trabalho.

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Joubert trabalhou no Studio “Santuário Tattoo Clinic” e foi sócio proprietário do Studio “Toast Body Art”, em Belo Horizonte – MG ( http://ubbibr.fotolog.com/toastbodyart/ ).

Estudou Teologia no Seminário Teológico Evangélico do Brasil – STEB, com especialização em Grego pelo Departamento de Línguas Clássicas da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e esteve pastor na Igreja Batista Nova Aliança, em Nova Lima, Grande BH

Atualmente congrega da Comunidade “Caverna de Adulão”.
Devemos apoiar o casamento gay?
Wolfhart Pannenberg
O amor pode ser pecaminoso? Toda a tradição da doutrina cristã ensina que existe tal coisa como o amor invertido, pervertido. Os seres humanos são feitos para amar, como criaturas de Deus, que é amor. Contudo, essa designação divina é corrompida sempre que as pessoas se afastam de Deus e amam as outras coisas mais do que a Deus.
Jesus disse: “Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim” (Mt 10.37). O amor a Deus precisa ter a precedência sobre o amor aos nossos pais, embora o amor aos pais seja recomendado no Quarto Mandamento.
A vontade de Deus deve ser o guia de nossa identidade e de determinarmos o que somos. O que isso implica para o comportamento sexual pode ser visto no ensino de Jesus sobre o divórcio. Para responder a pergunta dos fariseus sobre a admissibilidade do divórcio, Jesus se refere à criação dos seres humanos. Nessa passagem, Jesus vê a Deus expressando seu propósito para as suas criaturas: a criação confirma que Deus fez os seres humanos como macho e fêmea. Por isso, o homem deixa seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher, e os dois se tornam uma só carne.
Jesus conclui disso que a permanência indissolúvel da comunhão entre o esposo e a esposa é a vontade do Criador para os seres humanos. A comunhão indissolúvel do casamento é, portanto, o alvo de nossa criação como seres sexuais (Mc 10.2-9). Visto que esse princípio da Bíblia não está limitado a tempo, a palavra de Jesus é o fundamento e o critério para todo pronunciamento cristão sobre a sexualidade, não somente sobre o casamento em especifico, mas sobre toda a nossa identidade como seres sexuais. De acordo com o ensino de Jesus, a sexualidade humana como macho e fêmea é destinada à comunhão indissolúvel do casamento. Esse padrão dá essência à doutrina cristã a respeito de todo o âmbito do comportamento sexual.
No todo, a perspectiva de Jesus corresponde à tradição judaica, embora sua ênfase sobre a indissolubilidade do casamento vá além da estipulação quanto ao divórcio na lei judaica (Dt 24.1). Os judeus compartilhavam da convicção de que homens e mulheres, em sua identidade sexual, foram planejados para a comunidade do casamento. Isso também explica a avaliação do Antigo Testamento quanto aos comportamentos sexuais que se afastam dessa norma, incluindo fornicação, adultério e relações homossexuais.
As avaliações bíblicas da prática homossexual são inequívocas em sua rejeição, e todas as suas afirmações sobre este assunto são concordantes, sem exceção. O Código de Santidade, em Levítico, afirma incontroversamente: “Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; é abominação” (Lv 18.22). Em Levítico 20, o comportamento homossexual é incluído entre os crimes que merecem a pena capital (Lv 20.13; é significativo que isso também se aplica ao adultério no versículo 13). Nesses assuntos, o judaísmo sempre se reconheceu distinto das outras nações.
A mesma distinção continuou a determinar a posição do Novo Testamento quanto à homossexualidade, em contraste com a cultura helênica que não via ofensa nas relações homossexuais. Em Romanos, Paulo inclui o comportamento homossexual entre as conseqüências de rejeitar a Deus (Rm 1.27). Em 1 Coríntios, a prática homossexual é categorizada ao lado de fornicação, adultério, idolatria, avareza, bebedeira, furto e roubo como um comportamento que impede a participação no reino de Deus (1 Co 6.9-10). Paulo afirma que por meio do batismo aquelas pessoas foram libertas de seu embaraço em todas essas práticas (1 Co 6.11).
O Novo Testamento não contém uma única passagem que possa indicar uma avaliação mais positiva da atividade homossexual para contrabalançar essas afirmações de Paulo. Assim, todo o testemunho da Bíblia inclui a prática da homossexualidade, sem exceção, entre os comportamentos que expressam, de modo impressionante, o fato de que a humanidade se afastou de Deus. Esse resultado exegético coloca limites bem estreitos no ponto de vista sobre a homossexualidade para qualquer igreja que está sob a autoridade das Escrituras. E as afirmações bíblicas sobre este assunto expressam a conseqüência negativa em relação às opiniões bíblicas positivas sobre o propósito da criação do homem e da mulher, em sua sexualidade.
Essas passagens bíblicas que são negativas em relação ao comportamento homossexual não estão lidando apenas com opiniões secundárias que poderiam ser negligenciadas sem prejuízo da mensagem cristã como um todo. Além disso, as afirmações bíblicas sobre a homossexualidade não podem ser relativizadas como expressões de uma situação cultural que hoje está ultrapassada. Desde o início, o testemunho bíblico se opôs deliberadamente às pretensões de seu ambiente cultural, em nome da fé no Deus de Israel, que na Criação designou o homem e a mulher para uma identidade específica.
Os defensores contemporâneos de uma mudança na opinião da igreja a respeito da homossexualidade argumentam constantemente que as afirmações bíblicas desconheciam a importante evidência antropológica moderna. Essa nova evidência, dizem eles, sugere que a homossexualidade tem de ser considerada um constituinte da identidade psicossomática de pessoas homossexuais, completamente anterior a qualquer expressão homossexual correspondente. (Por questão de clareza, é melhor falarmos aqui deinclinação homófila como algo distinto da prática homossexual.) Esse fenômeno ocorre não somente em pessoas que são homossexualmente ativas. Mas a inclinação não precisa ditar a prática. É característico dos seres humanos que nossos impulsos sexuais não estão confinados a determinada esfera de comportamento; eles permeiam nosso comportamento em todas as áreas da vida. É claro que isso inclui os relacionamentos com pessoas do mesmo sexo. Contudo, exatamente pelo fato de que estímulos eróticos estão envolvidos em todos os aspectos do comportamento humano, somos confrontados com a tarefa de integrá-los a toda a nossa vida e conduta.
A existência de inclinações homófilas não leva automaticamente à prática homossexual. Pelo contrário, essas inclinações podem ser integradas numa vida em que elas são subordinadas ao relacionamento com o sexo oposto; e nesse relacionamento a atividade sexual não deve ser o centro todo-determinante da vida e da vocação humana. Como salientou corretamente o sociólogo Helmut Schelsky, uma das realizações primárias do casamento, como instituição, é o seu engajamento da sexualidade humana no cumprimento de tarefas e objetivos ulteriores.
Portanto, a realidade de inclinações homófilas não precisa ser negada e não deve ser condenada. Todavia, a questão é como lidar com essas inclinações no âmbito da tarefa humana de dirigirmos responsavelmente nosso comportamento. Esse é o verdadeiro problema; e, nesse ponto, temos de concordar com a conclusão de que a atividade homossexual é um afastamento da norma quanto ao comportamento sexual que foi dado ao homem e à mulher como criaturas de Deus. A igreja deve ter essa postura não somente no que diz respeito à atividade homossexual, mas também a qualquer atividade sexual que não expresse o alvo do casamento entre um homem e uma mulher, em especial, o adultério.
A igreja tem de conviver com o fato de que, nesta área da vida, como em outras, afastamentos da norma não são excepcionais, mas comuns e ocorrem em todo o mundo. A igreja tem de confrontar todos os que estão interessados em tolerância e entendimento, mas também deve exortá-los ao arrependimento. Ela não pode abandonar a distinção entre a norma e o comportamento que se afasta da norma.
Este é o limite de uma igreja cristã que se reconhece sujeita à autoridade das Escrituras. Aqueles que instam a igreja a mudar a norma de seu ensino sobre este assunto precisam saber que estão promovendo cisma. Se uma igreja se permitisse chegar ao ponto em que cessaria de tratar a atividade homossexual como um afastamento da norma bíblica e reconheceria uniões homossexuais como companheirismo pessoal de amor equivalente ao casamento, essa igreja não estaria mais firmada no alicerce bíblico; antes, ela estaria contra o testemunho inequívoco das Escrituras. Uma igreja que tomasse esse passo deixaria de ser a igreja una, santa, católica e apostólica.