Texto base da ocasião do 2º Café Teológico.
Por Paulo Brabo.
No princípio a terra era sem forma e vazia. No princípio era o Verbo. Ou, como se diz com outro vocabulário: era uma vez.
Quando ouviram pela primeira vez a palavra da Lei nos Dez Mandamentos, conta uma velha história rabínica, os israelitas desfaleceram. Suas almas os deixaram. A palavra então retornou a Deus e bradou:
– Ah, Soberano do Universo, tu vives eternamente e tua Lei vive eternamente. Mas enviaste-me a mortos. Estão todos mortos!
Por essa razão Deus teve misercórdia e tornou sua palavra mais palatável. Essa história traz duas lições. Primeiro que a palavra de Deus é poderosa. É sua própria identidade, e “quem pode resistir à sua presença?” Em segundo lugar, para tornar sua palavra-presença mais palatável, Deus encontrou uma solução: recontou-a sob a forma de histórias.
Quando o grande rabino Israel Shem Tov via a desgraça ameaçando os judeus era seu costume ir a um certo lugar da floresta para meditar. Ali ele acendia uma fogueira, proferia uma oração especial e o milagre era realizado e o infortúnio evitado. Mais tarde quando seu discípulo, o celebrado Magid de Mezritch, teve oportunidade, pela mesma razão, de interceder ao céu, ele foi ao mesmo lugar na floresta e disse: “Senhor do universo, ouve: não sei acender uma fogueira, mas sou ainda capaz de proferir a oração”, e novamente o milagre foi realizado. Ainda mais tarde o rabino Moshe-leib de Sasov, a fim de salvar seu povo mais uma vez, foi à floresta e disse: “Não sei acender uma fogueira e não conheço a oração, mas conheço o lugar da floresta e isso deve bastar”. Bastou e o milagre foi realizado. Então recaiu sobre o rabino Israel de Rhyzin afastar o infortúnio. Sentado em sua poltrona, cabeça entre as mãos, ele disse a Deus: “Não sei acender uma fogueira, não conheço a oração e não sei achar o lugar na floresta; tudo que posso fazer é contar a história, e deve bastar”.
Bastou.
De onde vem a obsessão dos judeus e dos rabinos, e portanto de Jesus, com a narrativa? Porque os escritores bíblicos preocupam-se menos com lugares, conceitos e idéias do que com relatos, parábolas e genealogias?
Pressuposto essencial do Primeiro e do Novo Testamento:
> Deus revela-se no fluido invisível do tempo, e não no tecido visível do espaço. Na seta indomável do tempo, não no círculo conquistável do espaço.
Costumamos pensar em ídolos como estátuas e imagens, coisas visíveis. Porém na época da revelação da Lei os ídolos dos outros povos eram menos deuses visíveis do que deuses essencialmente entranhados no espaço. Deuses territoriais como Baal, deuses definidos por onde estavam, por onde residiam, pelo território que dominavam, pelo local onde podiam ser encontrados, por onde deviam ser conjurados. Deuses do domínio do espaço.
Enquanto as divindades dos outros povos estavam associadas a lugares e coisas, o Deus de Israel era o Deus dos acontecimentos. Não estava confinado a um território ou a coisa alguma: nenhum templo, nenhum artefato, nenhuma imagem. Mesmo o projeto do tabernáculo (que era itinerante, e portanto não territorial) parece ter sido reação compassiva de Deus ao episódio do bezerro de ouro. Deus é invisível não por ser irreal, mas por dizer respeito à realidade do tempo.
Porém em toda a criação a primeira coisa a ser santificada não foi uma palavra, uma coisa, uma idéia, uma montanha, um tabernáculo: foi o sábado, um momento no tempo. Deus escolheu o sábado, um momento no tempo, para o santificar. A primeira providência de Deus é que reavaliemos nossas categorias de santidade: não um lugar, não uma coisa, mas um momento, ou seja, um trecho de narrativa. A santidade do tempo veio primeiro, depois a santidade do homem, e por fim a santidade do espaço.
Na civilização ocidental, tudo que não diz respeito à influência judaica - e de tudo que há de judaico na cultura cristã - diz respeito à obsessão do homem em conquistar o espaço. Somos expansionistas: queremos preencher o espaço. Nossa civilização, exatamente como egípcios, babilônios e filisteus, vive debaixo da idolatria da imagem, e portanto do espaço: associamos valor e beleza e espiritualidade a coisas visíveis e palpáveis no espaço. Ferramentas, computadores, ícones, periféricos, aplicativos, templos, ilustrações, programas de rádio, estudios de gravação, casas na praia, viagens à Grécia, à Disney ou à Palestina. Queremos preencher o espaço, dominá-lo, percorrê-lo - queremos ser definidos por isso. A Tela de plasma, a Ferrari, o Land Rover, os quadros na parede, os vinhos certos na geladeira, estão preenchendo o espaço - demonstrando que fomos capazes de conquistá-lo.
Somos muito menos acostumados a - e preparados para - dominar o tempo. Sabemos oferecer o melhor do espaço a nossos filhos, mas travamos porque não sabemos como oferecer a eles o melhor do tempo. Não sabemos o que fazer com o tempo: não sabemos olhar o tempo de frente. Por mais articulados, resolvidos e ricos que sejamos, aterrorizam-nos: sala de espera. Fila de banco. Aposentadoria. Férias. Momentos em que temos de lidar com o tempo. O tempo não pode ser dominado, é "invisível" e nos apavora.
É por isso que temos horror, tanto na qualidade de cristãos como na de cidadãos do século XXI, à manifestação mais essencial da devoção judaica, o shabat/sábado - o dia em que tudo que se deve fazer é encarar o tempo. O que nos assusta não é o ócio, o tempo "perdido e improdutivo," mas nossa incapacidade de lidar com o tempo, de encará-lo de frente, nossa cegueira em enxergar Deus nele.
É por isso que o shabat dos cristãos, o domingo, foi por nós inteiramente preenchido por atividades, de modo que ele não corresponde de forma alguma ao shabat, que é cessação e abstenção e continência. No domingo temos coisas para fazer e lugar para ir. O shabat como dia de cessação nos apavora porque nele não temos obrigação nenhuma a desempenhar e destino nenhum para alcançar. É um dia em que a passagem e a contemplação do tempo são fins em si mesmos, e isso nos é inconcebível.
Nós, precisamente como egípcios e gregos, somos obcecados por encontrar Deus no espaço. Os judeus - como Jesus e os primeiros cristãos - permanecem obcecados por encontrar Deus no fluxo do tempo.
O shabat permitiu que o judaísmo se definisse desde o primeiro momento como religião linear, e não rito circular.
Uma religião pode escolher definir-se, basicamente, pelo seu respeito aos ciclos ou pela sua obsessão com a história.
As religiões que optam pelos ciclos (vamos chamá-las, apenas por conveniência, de circulares) celebram incessantemente o [eterno] retorno dos ciclos naturais: as estações do ano, as épocas de plantio e colheita, o ciclo reprodutivo de homens e animais – e portanto o sexo. Seus rituais são construídos para cultivar aqui e agora, no presente, a beleza e o mistério do que sempre aconteceu e voltará invariavelmente a acontecer. Uma religião circular opinará que são inteiramente irreais os limites entre uma época e outra, entre uma geração e outra, entre uma manifestação da natureza e outra: e que, portanto, são ilusórias as distinções que fazemos usualmente entre homens e animais até mesmo entre uma pessoa e outra. Tudo é tudo, todos serão todos e todos já foram todos e misteriosamente o são. Não sobra, oficialmente, espaço para noções como a individualidade ou a singularidade da espécie humana.
As religiões que optam pela história (vamos chamá-las de lineares) enxergam a existência não como um círculo, mas como uma flecha com uma direção e um propósito, uma ousada aventura norteada por uma inteligência oculta e empreendedora cujo plano vai se executando e revelando progressivamente. Como não contam com os ciclos para manter a sua sanidade, as religiões lineares dependem incessantemente de revelações e de registros de revelações: definem-se pelos seus profetas, especialmente pela expectativa dos profetas e pelas histórias de profetas. Tendem por isso a ignorar o presente a a concentrar-se no futuro – e, com pelo menos a mesma paixão, no passado. Ao mesmo tempo, enfatizam a responsabilidade individual e a absoluta singularidade de tudo: do momento histórico, da criação, da espécie, da nação, do indivíduo, de Deus.
Os circulares andam em círculos, os lineares andam para frente e para trás. Os lineares almejam ousadamente estar onde nenhum homem jamais esteve; os circulares têm por certo que estão onde todos já estiveram e sempre estarão.
”A religião dos patriarcas estava infundida de um senso histórico que é caracteristicamente semita ou hebraico. Ao contrário dos povos estabelecidos em Canaã, que estavam mais preocupados em ajustar os ciclos da natureza e preservar o equilíbrio social, os hebreus errantes tendiam a expressar a sua fé na linguagem dinâmica da história. Eram peregrinos e aventureiros que, em reposta a um chamado divino, haviam deixado a sua terra de origem e partido para o desconhecido e para o incerto – rumo a uma terra que Deus lhes mostraria no devido tempo. Viviam por um empreendimento de fé, confiando que o seu futuro estava nas mãos do seu Deus”.
Embora fosse celebrado periodicamente, o shabat não correspondia a nenhum ciclo natural - da agricultura, da lua, das estrelas, do sol, do corpo humano. Sua recorrência era uma maneira de contar a passagem do tempo (religião linear) e não de celebrar um ciclo (ritos circulares).
No shabat não há templo para se ir, não há peregrinação para se fazer, não há ritual palpável para se cumprir. Trata-se de uma celebração cuja essência consiste em encontrar suficiência não em fazer (ou em deslocar-se, que é a mesma coisa) mas em existir. Ou seja, o desafio para o celebrante do shabat é o de dominar o tempo, e encontrar dessa forma Deus em seu próprio ambiente.
O domínio de Deus não é o espaço, é o tempo - e portanto seu modo de expressão não é o ídolo ("não farás para ti imagem...") nem a teologia conceitual, mas a narrativa.
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Hoje em dia tendemos a pensar a respeito de Deus em categorias teológicas, e não narrativas. Sabemos descrever o mecanismo do pecado original e a economia da redenção; sabemos enumerar as quatro leis espirituais e desfiar a lista dos atributos de Deus. Defendemos e explicamos a nossa fé em termos de trindade, sacrifício substitutivo, imanência, soberania, graça irresistível. Acreditamos que a essência de Deus é transmitida de forma adequada e suficiente através de dogmas, proposições e conceitos. Discutimos se a Bíblia é ou contém a palavra de Deus. Se é cristã uma visão de mundo que contorne os conceitos da depravação total ou da perseverança dos santos. Se é possível conciliar predestinação com responsabilidade pessoal, livre-arbítrio com soberania de Deus.
De que forma o fluxo imponderável da narrativa consolidou-se na forma de proposições, sistemas e credos? Por que a parábola acabou substituída pela filosofia, a narrativa pela teologia sistemática?
O pontapé inicial dessa transformação foi a influência da filosofia grega na produção literária e visão ideológica dos primeiros cristãos. A cosmovisão judaica foi influenciada e por fim substituída pela noção grega de um deus impassível e fora do tempo - sendo que um Deus fora do tempo é inconcebível dentro da visão de mundo da Bíblia Hebraica.
O judaísmo encontrava Deus no fluxo dos acontecimentos, e portanto no idioma do tempo e da narrativa; os gregos (e, em conseqüência, os cristãos) buscavam cristalizar Deus no campo das idéias, e portanto dentro dos limites do espaço.
O judaísmo recusava-se - e ainda recusa-se - a permitir que Deus fosse reduzido ao nível das conclusões, dos conceitos e das idéias. A "teologia" judaica, epitomizada pelo Talmude, é dialética e não dogmática. O problema de tentar-se definir Deus através de idéias é que uma idéia, uma vez formulada, torna-se imediatamente um monumento, um marco fixo a que se pode voltar e diante do qual podemos nos dobrar. Um conceito estanque a respeito de Deus é, essencialmente, um ídolo - e emblema da nossa obsessão em tentar formulá-lo no espaço ao invés de vislumbrá-lo no tempo.
Blaise Pascal observou certa vez que o Deus da Bíblia é o “Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó”, não o Deus dos filósofos e dos sábios. “Isso é verdade no sentido de que a fé bíblica é, para perplexidade e escândalo de muitos filósofos, de caráter fundamentalmente histórico. Suas doutrinas são realidades e eventos históricos, não valores abstratos ou idéias existindo num reino atemporal”.
No entanto, pela influência dos gregos, a religião linear do judaísmo acabou virando rito circular na maior parte das manifestações posteriores do cristianismo.
O segundo golpe contra a visão narrativa de Deus veio com a glorificação da razão que configurou o Renascimento e o Iluminismo - e que discutiremos a seguir.
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Recentemente, muitos teólogos tem começado a questionar a supremacia da teologia sistemática.
O primeiro problema da teologia sistemática, concluíram eles, é que essa intelectualização está baseada nas suposições de filosofias passadas e contemporâneas – que são por definição limitadas e condicionadas. A teologia sistemática codificada está irremediavelmente embutida num sistema específico e isso afeta suas conclusões e expressões. Em segundo lugar, todas as teologias sistemáticas, até hoje, são fechadas a outros com diferentes pressuposições e fundamentos, e são apenas uma peça do todo.
Em contraste, a narrativa consegue tocar de imediato qualquer pessoa, independentemente do sistema filosófico ou ideológico dentro dos quais tenha sido condicionada.
Muitos teólogos passaram por essa razão a questionar o que chamam de nossa “velha dependência química a um modo de pensar analítico, racionalista e prosaico”. Amos Wilder, por exemplo, critica “o imbecilizante axioma de que a verdade genuína (ou a verdadeira sabedoria) deve limitar-se ao que pode ser enunciado sob a forma de prosa conceitual, em linguagem denotativa, despida de qualquer sugestão conotativa; ou seja, num enunciado ou descrição de caráter científico”.
Thomas Driver:
"Alguns teólogos tem começado a demonstrar interesse na importância da narrativa, sentindo que o nosso discurso lógico, científico e teológico é secundário. Compartilho dessa visão. Tenho há muito refletido que a teologia é para a narrativa religiosa o que a crítica literária é para a literatura: mero comentário executado sobre uma forma superior de expressão. Sou um dos que crêem que a teologia afastou-se demais, no curso do tempo, de suas raízes narrativas. Encontro-me não apenas concordando que toda teologia tem origem em narrativas, mas também ponderando que todo conhecimento provém de um modo dramático de compreensão. Longe de meramente ilustrar verdades que já conhecemos de algum outro modo, a imaginação dramática é o modo pelo qual damos os passos essenciais rumo ao conhecimento de qualquer natureza".
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Não é a partir do nada que estamos chegando a essa nova visão. Como o sujeito da parábola, estamos descobrindo um tesouro enterrado que nos precedeu. Esse modo narrativo de enxergar a revelação de Deus só parece novo e revolucionário enquanto desconhecemos as suas raízes judaicas a portanto bíblicas.
Depois de séculos de teologia sistemática, para que começássemos a redescobrir a importância da narrativa, foi necessário que fossemos tocados pelos ventos da pós-modernidade.
Quem fala em pós-modernidade está dividindo a história da civilização, muito grosseiramente, em três grandes períodos: a era pré-moderna, a era moderna e a era dos nossos dias – esta que, na falta de um nome melhor, convencionou-se chamar de “pós”.
A primeira era, a pré-modernidade, começou com o primeiro homem e estendeu-se a até algum momento do século XVIII. Durante todo esse período o ser humano manteve-se, basicamente, um bicho místico. A vida estava além do controle do homem e só podia ser explicada em termos sobrenaturais. Em geral não ocorreria a ninguém duvidar da realidade do mundo dos espíritos ou de coisa que o valha (digamos, o imaterial mundo das idéias de Platão), e todas as soluções aos problemas do ser humano dependiam da boa vontade de Deus ou deuses.
Perto de 1700 a modernidade fincou pé. A Renascença deu a primeira, o Iluminismo a segunda e definitiva estocada que tiraram Deus do centro das atenções e colocaram ali o homem e os esforços humanos – particularmente a razão. A principal característica da era moderna é a sua suprema confiança na mente humana. Gente como Descartes gravou a ferro e fogo na mentalidade ocidental a noção de que a razão é o único caminho para o conhecimento, e toda a era moderna partiu do pressuposto de que a razão e a ciência (aplicadas em todas as áreas: saúde, política, urbanismo, ética) trariam as soluções necessárias para os problemas da humanidade. O slogan da nossa bandeira brasileira, “Ordem e Progresso”, é tipicamente moderno em seu otimismo na iniciativa humana fundamentada no triunfo da sensatez e da razão.
Foi ao redor de 1960 que a maré começou a mudar. Coisas como a crise de energia, a teoria da relatividade, a guerra do Vietnã, a bomba de Hiroshima e os abusos do consumismo contribuíram para que as pessoas passassem gradualmente a concluir que a razão humana talvez não trouxesse, como prometera, respostas para os anseios mais profundos do mundo e do homem. Trezentos anos da supremacia da razão não haviam trazido nenhuma solução unânime para os problemas da guerra, da fome, da injustiça, do vazio existencial. A razão, concluíram esses, fracassara, e diferentes grupos independentes começaram a tatear em todas as direções em busca de alternativas. A revolução sexual, mística e química trazidas à luz pelos hippies dos anos 60 foram os primeiros movimentos que pressupunham essa desconfiança pós-moderna para com as soluções otimistas e pré-fabricadas da era anterior.
A pós-modernidade que se levantou das cinzas da modernidade é tremendamente difícil de definir – entre outras coisas, porque definição é conceito tipicamente moderno e pertence a uma era anterior. Pode-se dizer com segurança que o homem pós-moderno é ao mesmo tempo cético, espiritual e tolerante. Ele duvida da eficácia da razão, do pensamento linear, da lógica convencional, da explicação racional. Ele está portanto aberto a todas as formas de misticismo e religiosidade, mas não apostará na validade definitiva de nenhuma, porque crê que todas contém a sua parcela de “verdade” e nenhuma pode ter a pretensão de se posicionar como verdade definitiva – possibilidade que arruinaria a validade e a beleza das outras alternativas.
Por que que a igreja cristã não estava pronta e presente para acolher esses “filhos desiludidos” da razão e da modernidade logo que eles começaram a pipocar na década de 1960? Por que os hippies não se voltaram para a fé cristã quando precisaram satisfazer o seu anseio por uma espiritualidade real?
A resposta curta é que a igreja cristã havia, ela mesma, se dobrado no altar do modernismo. O discurso da supremacia da razão havia sido tão longo e eloqüente que até mesmo os cristãos tinham caído no logro da sua pregação. A igreja cristã havia de alguma forma adotado a noção paradoxal de que tudo a respeito da fé pode ser explicado e exposto racionalmente, inclusive as imponderabilidades da criação e da salvação.
A própria Bíblia havia caído vítima dessa ênfase excessiva na razão humana. Complicadas fórmulas eram e são utilizadas para provar que a escritura cristã faz sentido racional e é espelho fiel da realidade científica. Em 1793, Kant publicava A religião apenas dentro dos limites da razão, e quase duzentos anos depois Josh McDowell articulava ainda uma defesa racional da divindade de Cristo, demonstrando por A + B que a fé cristã é a escolha mais sensata na prateleira.
O problema é que, adotando essas interpretações racionais, a igreja confessava que a ciência e o racionalismo são os critérios pelos quais a realidade deve ser julgada.
Quando começaram a buscar onde saciar a sua terrível sede pelo espiritual e pelo místico, as pessoas foram forçadas a concluir que a fé cristã era simplesmente racional demais para interessá-las – e a igreja perdeu assim o bonde da pós-modernidade.
Chamar a Bíblia de pós-moderna seria anacronismo, mas creio que pode-se com segurança afirmar-se que os escritores bíblicos não tinham uma mentalidade moderna; não criam na supremacia da razão nem na superioridade da exposição linear e dos sistemas racionais.
Jesus, por exemplo. Para escândalo e perplexidade dos teólogos, Jesus não chegou nem perto de expor a sua teologia de forma sistemática. Tudo que ele deixou a fim de transmitir a sua mensagem foi o seu exemplo, um punhado de histórias curtas e uma longa série de frases de efeito, sendo que cada um desses elementos não parece sustentar qualquer conexão imediata com os outros. Para seus ouvintes e leitores tudo que o discurso de Jesus deixou foi uma série livre de imagens sem qualquer ordem ou prioridade particular: um videoclipe do reino, por assim dizer.
Jesus não fez uma série de conferências, não expôs as quatro leis espirituais, não definiu predestinação nem trindade, não pregou teses na porta do Templo, não apresentou uma vez que fosse o plano da salvação. Ao invés de apresentar um cenário racional e ordeiro, uma visão geral seguida por definições, demonstrações e apêndices, tudo que ele fazia era coçar a barba e dizer: “A que posso comparar o reino?...”
Os escritores bíblicos também não compartilhavam do nosso horror tipicamente moderno/racionalista à contradição. O livro de Gênesis, por exemplo, parece narrar a criação de duas formas contraditórias, e até a ascensão do modernismo isso nunca foi motivo de escândalo para ninguém. É racionalista até mesmo o esforço tradicional em conciliar as duas versões. Parece absurdo à mente moderna considerar que as duas possam ser ao mesmo tempo diferentes e verdadeiras: isso seria na nossa opinião relativizar a verdade. Os escritores bíblicos provavelmente chamariam a mesma coisa de transmitir uma profunda verdade espiritual.
Como não estava preso aos nossos escrúpulos com a racionalidade, Jesus sentia-se livre para dizer coisas como “Eu sou a luz do mundo” sem temer ser apanhado em contradição com a “verdade” científica de que a Terra é iluminada pelo sol e não por Jesus. Não é como se a realidade espiritual contradissesse ou relativizasse a realidade científica da importância do sol. Não há relativização aqui, embora as duas coisas sejam verdade ao mesmo tempo.
Ainda mais revelador é o fato de Jesus ter afirmado ser, ele mesmo, a Verdade com letra maiúscula – tirando dessa forma para sempre a verdade do domínio da razão. Se a verdade é uma pessoa ela não tem como ser comprovada ou refutada pelo método científico. Uma pessoa pode ser no máximo abraçada e experimentada, nunca explicada racionalmente.
A Bíblia traz um convite para nos relacionarmos pessoalmente com a verdade, e não um tratado para a comprendermos racionalmente.
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Jesus nos ensinou e nos ensinou a ensinar através de narrativas, não de conceitos e abstrações. A narrativa é a forma menos dogmática de se ensinar, mas está longe de ser inofensiva: nas mãos de Jesus a narrativa era um irresistível saca-rolhas: denunciava subterfúgios e exigia posicionamento.
O filósofo alemão Arthur Schopenhauer, influenciado genericamente pelo pensamento da modernidade e especificamente pelo racionalismo de Kant, opinava que a Bíblia apresenta uma tremenda desvantagem para uma obra com a pretensão de ser livro sagrado: sua natureza narrativa - o fato de ser e contar, essencialmente, uma história. Nossa obsessão com teologia demonstra que pensamos como ele. Precisamos ser constantemente lembrados que antes da teologia havia a narrativa.
Nossa história pessoal repete a do cristianismo. Aprendemos logo a expressar e compreender a nossa fé sob a forma de conceitos e abstrações: idéias como salvação, remissão, morte substitutiva, eleição, trindade, onisciência, justificação e predestinação; coisas que habitam uma dimensão paralela fora do tempo e da experiência do dia-a-dia.
O judaísmo (e o cristianismo do Novo Testamento) convidam-nos a entender a nossa vocação de um ponto de vista narrativo. O que os judeus sabem é que fazem parte de uma história singular e é isso que os define e lhes basta. Não há espaço para teologia porque não há simplesmente necessidade dela.
A diferença de visão de mundo entre judeus e cristãos fica mais espetacularmente evidente quando se compara o credo de um com o de outro. A profissão de fé judaica, a ser repetida anualmente pelo adorador quando trazia ao santuário os primeiros frutos da colheita, encontra-se no trecho entre o quinto e o décimo verso do vigésimo-sexto capítulo do livro de Deuteronômio. E diz o seguinte:
Arameu prestes a perecer foi meu pai, e desceu para o Egito, e ali viveu como estrangeiro com pouca gente; e ali veio a ser nação grande, forte e numerosa. Mas os egípcios nos maltrataram, e afligiram, e nos impuseram dura servidão. Clamamos ao SENHOR, Deus de nossos pais; e o SENHOR ouviu a nossa voz e atentou para a nossa angústia, para o nosso trabalho e para a nossa opressão; e o SENHOR nos tirou do Egito com poderosa mão, e com braço estendido, e com grande espanto, e com sinais, e com milagres; e nos trouxe a este lugar e nos deu esta terra, terra que mana leite e mel. Eis que, agora, trago as primícias dos frutos da terra que tu, ó SENHOR, me deste.
Entre outras coisas, essa liturgia evidencia como a religião judaica transformou um evento eminentemente circular, a celebração anual da colheita, num momento que celebrava uma cosmovisão linear – Deus está envolvido nos eventos da vida do seu povo – através da rememoração da primordial história do Êxodo.
O que acho especialmente notável nessa confissão de fé é o fato dela ser totalmente narrativa; interpretativa por certo e talvez tendenciosa, mas inteiramente livre de abstrações e de necessidades teológicas. O adorador reconhece a mão de Deus na história do seu povo e na sua própria, e é grato por ela. Ponto final. Nenhuma tentativa de explicar a natureza de Deus ou destrinchar o seu plano. Nenhuma ambição de expor o mecanismo do universo ou da salvação. Compare com o credo dos apóstolos:
Creio em Deus Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra; e em Jesus Cristo um só seu Filho, Nosso Senhor: o qual foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu de Maria Virgem, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu aos infernos, ao terceiro dia ressurgiu dos mortos, subiu aos céus, está sentado à mão direita de Deus Pai Todo-Poderoso, de onde há de vir a julgar os vivos e mortos; creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na comunhão dos Santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna. Amém.
Apesar do cerne narrativo que mantém o cristianismo na estatura linear, cravando Jesus num momento específico da história, o credo apostólico é um campo minado: cuidadosíssimo jogo de palavras em que cada termo inocente remete a um complexo conceito teológico correspondente. Algumas das expressões e conceitos do credo que apontam para seus próprios tratados de teologia:
1. Deus Pai
2. Deus Todo-Poderoso
3. Criador do céu e da terra
4. Jesus Cristo um só
5. Jesus Cristo seu Filho
6. Jesus Nosso Senhor
7. concebido pelo poder do Espírito Santo
8. Maria Virgem
9. desceu aos infernos
10. está sentado à mão direita de Deus
11. julgar os vivos e mortos
12. Espírito Santo
13. Santa Igreja
14. Igreja Católica
15. comunhão dos Santos
16. remissão dos pecados
17. ressurreição da carne
18. vida eterna
Isso, naturalmente, em poderoso contraste com o caráter límpido da profissão de fé de Deuteronômio, que por ser narrativa – uma história – pode ser lido e assimilado de imediato por qualquer um.
O judeu, em seu credo, recorda o que Deus fez na história e retraça a atividade divina do nascimento do seu povo até o preciso momento presente e sua precisa benção. O cristão, no seu, estabelece distinções e categorias que pressupõe fundamentais, define termos e parece crer que o que caracteriza sua fé pessoal está na sua capacidade de elencar e abraçar uma série precisa de crenças corretas.
* * *
Muitos pensadores cristãos, em particular Philip Yancey e Ricardo Gondim, tem chegado à conclusão que a visão mais acurada a respeito de Deus não está confinada nos tratados de teologia sistemática, mas viva nas obras de ficção e nos exercícios de narrativa - muito claramente em romances como os de Vitor Hugo, Dostoiévski e Tolstoi.
Mas até que ponto chega a supremacia da narrativa? Tolkien cria que a narrativa cristã era poderosa o bastante para redimir toda a obra criativa do homem, expressa em todos os mitos e lendas de todas as culturas. Graças à narrativa cristã, diz ele, a arte "foi comprovada".
Eu ousaria dizer que, analisando a Narrativa Cristã por esse prisma, tem sido há muito meu sentimento (jubiloso sentimento) que Deus redimiu as criaturas criadoras-de-corrupção, os homens, de um modo que incluiu também esse aspecto, tanto quanto os outros, de sua estranha natureza. Os evangelhos contém um conto de fadas, ou uma narrativa de natureza mais abrangente que abarca toda a essência dos contos de fadas. Eles contém muitas maravilhas, particularmente artísticas, belas e emocionantes: “míticas” em sua significância perfeita e suficiente e ao mesmo tempo poderosamente simbólicas e alegóricas – e entre as maravilhas a maior e mais completa concebível é a eucatástrofe. O nascimento de Cristo é a eucatástrofe da história humana. A ressurreição é a eucatástrofe da narrativa da Encarnação. Essa história começa e termina com júbilo. Ela exibe de forma proeminente aquela “consistência interna de realidade”. Não há história jamais contada que os homens prefeririam que fosse verdadeira, e nenhuma que um maior número de homens céticos tenha aceitado como verdadeira por seus próprios méritos. Pois a sua Arte exibe o tom supremamente convincente da Arte Primeira, isto é, da Criação. Rejeitá-la conduz à loucura ou à ira.
Mas no Reino de Deus a presença do maior não deprecia o menor. O homem redimido é ainda homem. Contos e fantasias persistem ainda, e devem persistir. O Evangelho não abrogou as lendas; ele as santificou, especialmente no que diz respeito ao seu “final feliz”. O cristão tem ainda de trabalhar, com sua mente e com seu corpo, para sofrer, esperar e morrer; porém ele agora percebe que suas inclinações e faculdades têm um propósito que pode ser redimido. Tamanha é a dádiva que lhe foi concedida que ele é capaz agora, talvez, de intuir que pela Fantasia ele pode de fato contribuir no processo de esfoliamento e variado enriquecimento da criação. Todos os contos podem tornar-se realidade; e ainda assim, ao final, depois de redimidos, eles podem se mostrar tão similares e distintos das formas que damos a eles quanto o homem, finalmente redimido, será similar e distinto ao caído que agora conhecemos.
Não é difícil imaginar a tremenda empolgação e alegria que se faria sentir se descobríssemos que algum conto de fadas particularmente belo se mostrasse “primariamente” verdadeiro, sua narrativa se provasse factualmente histórica, sem que ele ainda assim perdesse necessariamente a significância mítica e alegórica que possuía. Não é difícil, pois não se requer que nos esforcemos de modo a conceber algo de qualidade desconhecida. Esse júbilo teria exatamente a mesma qualidade, se não o mesmo grau, do júbilo que produz a “reviravolta” final num conto de fadas: um júbilo tal que exibe o sabor distinto de verdade primária (de outro modo não poderia ser chamada de Júbilo). Ele antecipa (ou reporta ao passado – a direção temporal não é nesse sentido importante) a Grande Eucatástrofe. O júbilo cristão, a Glória, é da mesma natureza; ele é porém proeminentemente (infinitamente, se nossa capacidade não fosse finita) elevado e regozijante. Pois essa história em particular é suprema – e é verdadeira. A Arte foi comprovada. Lenda e História encontraram-se e fundiram-se. Deus é Senhor de anjos, homens e elfos. (J. R. R. Tolkien, autor de O Senhor dos Anéis
Sobre contos de fadas, epílogo).